
Assisti atentamente à leitura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!” realizada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Lembrei-me dos idos dos anos 1970, quando, estudantes, corríamos dos cachorros (cães pastores-alemães!) do governador nomeado por suas qualidades de subalternidade – não merece ter o nome citado – ao irmos ouvir os discursos de Dom Hélder Câmara, nalguns colégios no Recife.
O governador se divertia atacando estudantes e cidadãos que se negavam a aceitar o status quo da falta de liberdades democráticas.
Dom Hélder, um ex-integralista, convertera-se há muito na corajosa voz dos pobres, dos indefesos e dos defensores do Estado Democrático de Direito.
Para nós, os jovens, democracia era uma ideia não vivenciada, quase uma utopia. Mas, sonhos se realizam. Depois vieram as lutas pelas Diretas-já, para a consumação do processo democrático. E, finalmente, a Constituinte.
O povo, embriagado, não escolheu o que poderia ser o melhor para nos representar. No entanto, a aprendizagem requer erros.
Dom Hélder era ameaçado constantemente (sua casa chegou a ser metralhada), mas o governo militar não tinha coragem de atingi-lo diretamente; atacava pessoas próximas, para intimidá-lo e calá-lo, como a tortura e o assassinato do Padre Antonio Henrique Pereira Neto, seu assessor.

Ele esteve à frente da Arquidiocese de Olinda e Recife durante todo o período da ditadura militar.
Defendendo os Direitos Humanos, condenou as perseguições políticas, as prisões, as torturas, o desaparecimento de pessoas e os assassinatos ocorridos na época. Sem nunca perder a esperança.
Talvez, por participações como a dele, não puderam contabilizar 30 mil mortos, como na Argentina, para tristeza de alguns.
Eis um de seus discursos:
CONSCIENTIZAÇÃO POLÍTICA (abril de 1978)
Meus queridos amigos,
Quem ama, de fato, a democracia, não pode temer a conscientização.
Conscientização não é despertar de consciência crítica? Como é possível chamar de comunista a quem se entrega ao trabalho de conscientizar, se o comunismo, ditadura de esquerda, teme tanto a conscientização quanto as ditaduras de direita?
Nosso povo está cantando:
“Eu quero, quero, quero ouvir a voz do povo
Eu quero ver todo mundo acordar
E descobrir dentro da realidade
Que a semente da verdade
Está querendo germinar.
Eu quero, quero, quero ouvir a voz do povo
Eu quero ver todo povo como irmão
Eu quero ver todo povo caminhando
Se libertando do medo que tem de tubarão
Eu quero, quero, quero ouvir a voz do povo
Todo povo tem boca pra falar
Ainda tem gente que se faz de muda
Fica num canto calada e sem se mexer do lugar
Eu quero, quero, quero ouvir a voz do povo
Ouvi um grito, mas não sei de quem foi
Grita sem medo, grita, grita minha gente
Quem morre calado é sapo debaixo do pé do boi
Eu quero, quero, quero ouvir a voz do povo
Quero ver todo o povo em união
A consciência não se ganha sem esforço
Vamos abrir nossos olhos para enxergar a situação
Eu quero, quero, quero ouvir a voz do povo
O povo não é mais caranguejo
Eu quero ver todo povo consciente
Descobrindo que é gente e caminhando pra frente.”
Só pode haver desenvolvimento autêntico com a participação do povo. E o povo só participa de olhos abertos e consciência desperta.
“Quem morre calado é sapo, debaixo do pé do boi”.
E não se trata apenas de morrer gritando. Trata-se de evitar que haja pés de bois esmagando criaturas humanas como se fossem sapos.
“O povo não é mais caranguejo”.
Caranguejo anda pra trás.
“Eu quero ver todo povo consciente, descobrindo que é gente e caminhando pra frente.”
Que venha o quanto antes o dia em que, de fato, o povo todo acredite que não é lixo, não é coisa, não é objeto, não é bicho, é criatura humana, é filho de Deus!
A gente ensina que o povo tem boca pra falar. A gente ensina “Trabalho e Justiça para Todos”.
É preciso que o povo fale e seja escutado. Que o povo clame por seus direitos e seja ouvido.
Justiça não pode ser, não deve ser somente para quem pode pagar advogado.
Quando veremos, de verdade, o povo caminhar pra frente? Que há progresso há … Mas não para todos. Não para o povo.
O querido povo ainda é muito caranguejo, ainda anda é pra trás.
Vamos nos unir para apressar a hora em que, como gente, o povo caminhe para frente!