
Sinto que marchamos a caminho de descontinuidades radicais e rupturas estruturais, diz Sérgio Abranches, com o que concordo.
Os processos sociais não são lineares; às vezes dão piruetas. A sequência pode estar fora do horizonte visível. Prever, modelar, estimar o futuro é infrutífero – a atmosfera do tempo é composta de incertezas e possibilidades. Sequer conseguimos captar a direção das mudanças, inexoráveis.
As ideologias, nem sempre sutis, precisam ser reconhecidas como nulas para uma evolução positiva para a sociedade: elas ou são deturpadas por um nostálgico conservadorismo – e pela falta de um encorajamento para os novos tempos – ou esterilizadas por extremismos tolos.
Queriam que atribuíssemos o extremismo religioso a uma “característica” do Islã – o que não é verdade. Comodamente nos faziam esquecer das Cruzadas, da Inquisição, das “bruxas” de Salém (ironicamente, Salém era o nome antigo de Jerusalém e significa “paz”), das perseguições às religiões de origem africana etc.
Mas, como pode uma religião pregar o martírio? Como pode um líder político impor que jovens morram pela “pátria”, atacando outras? Como podemos dar tantos poderes a essas pessoas – psicopatas, em geral?
Essa cegueira ideológica não é, claro, exclusiva das religiões ou de mandatários populistas.
Os influenciadores culturais ou sociais, economistas e outros intelectuais também podem ser agentes do pensamento mágico e resoluto das ideologias.
Na crise de 2008, por exemplo, Alan Greenspan ficou “surpreso” com sua própria inércia – mas sem admitir que errara:
“Encontrei uma falha. Não sei até que ponto é significativa ou permanente.
Nossa visão do mundo, nossa ideologia, estava funcionando perfeitamente, exatamente.
Por essa razão fiquei chocado. Porque passei quarenta anos ou mais vendo indícios bastante claros de que ela funcionava excepcionalmente bem”. (Greenspan)
Totalmente sem rumo; aliás, com o leme nas mãos de piratas.
O rio dos acontecimentos sociais não corre mais sossegadamente, placidamente. Há correntezas, decorrentes da velocidade do fluxo e do encontro com obstáculos históricos. Parece haver uma grande queda à frente.
Há uma avalanche incessante de mudanças; afinal, somos 8 bilhões de pessoas procurando o que fazer, atuando sobre um acervo técnico-histórico-social fantástico.
As instituições talvez não se segurem; a tradição e o “faz sentido”, talvez não sejam suficientes para suas preservações. Vivemos, vejo assim, numa era revolucionária!
À medida em que essa revolução se desenrola – sem desfecho conhecido, como de hábito – rompendo e desarticulando o habitual, muitos cairão, e, outros (poucos) enriquecerão e se tornarão mais poderosos. Nunca há só perdedores.
Porém, há o grande risco de perdemos todos, como humanidade. A loucura e a destruição podem ser as consequências do avanço avassalador do conhecimento, com equivalente desapreço pela sabedoria e pelo desentendimento da vida como uma teia que só existe enquanto houver conexões.
Como um teimoso esperançoso, repito Guy Davenport: “Subimos, caímos. Podemos subir caindo. A derrota nos molda. Nossa única sabedoria é trágica, conhecida tarde demais, e somente para os perdidos.”
Ou, como a metáfora criada pelo físico Niels Bohr: uma parte da eternidade está ao alcance daqueles que são capazes de olhar a vertiginosa extensão do mar sem fechar os olhos.
Por que o mundo parece ser tão caótico, por que tantas vezes os seres humanos destratam uns aos outros, quais as “razões” da guerra, da ganância, da exploração, da indiferença sistemática ao sofrimento alheio? Sempre fomos assim ou, em algum momento, algo deu muito errado?
As questões acima são levantadas por David Graeber e David Wengrow, num livro recente, que abordarei brevemente.
Graeber, que comentei aqui no post abaixo, faleceu três semanas após a conclusão desse livro, em setembro de 2020.