Quando a dor se senta ao seu lado

Ellen Bass é uma escritora e poetisa americana. Tem 75 anos. 

Se você soubesse

E se você soubesse que seria o último/ a tocar em alguém? /Se você estivesse pegando ingressos, por exemplo,/ no teatro, rasgando-os,/ devolvendo os canhotos esfarrapados,/ poderia ter o cuidado de tocar a palma da mão, passar/ as pontas dos dedos/ ao longo da dobra da linha da vida.

Quando um homem puxa sua mala de rodas/ muito devagar pelo aeroporto, quando/ o carro na minha frente não sinaliza,/ quando o balconista da farmácia/ não diz obrigado, não me lembro/ que eles vão morrer.

Uma amiga me disse que ela estava com a tia./ Tinham acabado de almoçar e o garçom,/ um jovem gay de olhos negros cor de ameixa,/ brincou enquanto servia o café, beijou/ o rosto empoado da tia quando saíram./ Depois andaram meio quarteirão e a tia dela/ caiu morta na calçada.

Quão perto a espuma do dragão/ deve chegar? Qual a largura que a rachadura/ no céu tem que dividir?/ Como seriam as pessoas/ se pudéssemos vê-las como são,/ encharcadas de mel, picadas e inchadas,/ imprudentes, presas contra o tempo?

O importante é

amar a vida, ama-la mesmo
quando você não tem estômago para isso
e tudo o que você guardou afetuosamente
se desfaz feito papel queimado em suas mãos,
sua garganta repleta desse lodo.
Quando a dor se senta ao seu lado, seu calor tropical
condensando o ar, pesado como água,
mais apto para guelras do que para pulmões;
quando a dor pesa sobre você como sua própria carne,
só que um pouco mais, uma obesidade de dor,
você pensa: como pode um corpo suportar isso?
Então você segura a vida como um rosto
entre as palmas das mãos, um rosto banal,
sem sorriso encantador nem olhos violeta,
e você diz, sim, eu a aceitarei,
eu a amarei, novamente.

Relaxar

Coisas ruins vão acontecer.
Seus tomates desenvolverão um fungo
e seu gato será atropelado.
Alguém vai deixar a sacola com o sorvete
derretendo no carro e jogar
seu suéter de caxemira azul na secadora.
Seu marido vai dormir
com uma garota da idade de sua filha, os seios dela
saindo da blusa. Ou sua esposa
vai se lembrar de que é lésbica
e trocá-lo pela vizinha. O outro gato
– aquele de quem você nunca gostou – vai contrair uma doença
que exige que você abra sua boca febril a
cada quatro horas. Seus pais vão morrer.
Não importa quantas vitaminas você tome,
quanto pilates, você perderá suas chaves,
seu cabelo e sua memória. Se sua filha
não colocar o coração
em cada tomada elétrica que ela passar,
você chegará em casa e descobrirá que seu filho esvaziou
a geladeira, arrastou-a para o meio-fio
e ligou para a loja de eletrodomésticos para conseguir dinheiro para comprar drogas.
Há uma história budista de uma mulher perseguida por um tigre.
Quando ela chega a um penhasco, ela vê uma videira robusta
e desce até a metade. Mas também há um tigre abaixo.
E dois ratos – um branco e um preto – saem correndo
e começam a roer a videira. Nesse ponto, ela percebe um morango silvestre crescendo em uma fenda.
Ela olha para cima, para baixo, para os ratos.
Então ela come o morango.
Então aqui está a visão, a brisa, o pulso
em sua garganta. Sua carteira vai ser roubada, você vai engordar,
escorregar nos ladrilhos do banheiro de um hotel estrangeiro
e quebrar o quadril. Você ficará sozinho.
Oh, sinta como é doce e azedo
o suco vermelho, como as minúsculas sementes
trituram entre os dentes.

O Pequeno País

Único, eu acho, é o tartle escocês, aquela hesitação
ao apresentar alguém cujo nome você esqueceu.

E o que poderia capturar cafuné, o jeito brasileiro de dizer
‘passar os dedos, carinhosamente, pelos cabelos de alguém’?

Existe um termo em alguma língua para escolher ser feliz?

E onde está a fala para o bloco de gelo que embalamos na serragem de nossos corações?

Que denominação se aproxima do cheiro de damascos engrossando o ar
quando você ferve geléia no início do verão?

Que palavras alcançam a maneira como toquei você ontem à noite
– como se nunca tivesse conhecido uma mulher – um explorador,
totalmente curioso para descobrir cada
dobra e cavidade particular, sem guia,
nem mesmo o espelho do meu próprio corpo.

Ontem à noite você me disse que gostava das minhas sobrancelhas.
Você disse que nunca os notou antes.
Qual é a palavra que funde esta frescura
com a pena de a ter perdido?

E como até mesmo o toque em si pode não significar o mesmo para nós dois,
mesmo neste pequeno país de nossa cama,
mesmo nesta língua com apenas dois falantes nativos.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

Um comentário em “Quando a dor se senta ao seu lado

  1. Ellen Bass, nao é uma escritora de tragédias, na verdade ela é uma realista, todas as nuances narradas por essa escritora acontecem. E acontecem hoje nos nossos dias ao nossos olhos nus. Nada deve ser postergado ou deixado para trás, já que a brevidade e as coisas estão acontecendo como ela bem narrou. Não é delírio da autora é fato.Temos pressa. O tempo é breve e a vida muito passageira. “Já é tempo de comermos a sobremesa antes do almoço “. (Parafraseando alguém. )

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: