Doroteia

(Marques Rebelo, 1907-1973)

O carioca Marques Rebelo, pseudônimo de Eddy Dias da Cruz, foi jornalista e escritor. Das suas crônicas “Cenas da Vida Brasileira”, escritas nos anos 1940, escolhi uma que trata de tolerância, que escasseia.

Doroteia era alemã. Tinha onze anos, mas bem poderia dizer que já fizera treze.

Era branca e era loura; no narizinho arrebitado, duas ou três sardas de sol, punham uma sombra campesina sob os seus olhos celestes.

Estava no segundo ano do Grupo Escolar e era a única criança na cidade que usava a bolsa de livros em forma de mochila, sobre a qual escorregavam as douradas tranças muito apertadinhas, amarradas na ponta com laços de fita azul.

O pai era um homem romântico, dizia-se barão e fugira da Alemanha por questões políticas. Conhecia grego e latim como gente grande e embora fosse de poucas falas, e muito retraído, quando por acaso as conveniências da sociedade o obrigavam a uma rápida palestra não havia barbacenense que não dissesse, quando ele se retirava, ‘que era um sujeito inteligente e culto pra cachorro’.

Passava dos quarenta anos, trajava-se rigorosamente de preto e em vez de gravata usava uma fita de cetim. E não largava o charuto nem o livro. Lia andando na rua, no percurso da casa para o Ginásio, onde lecionava e onde ganhava muito pouco.

E como tinha a casa bem arrumada, vivia comprando livros por qualquer preço, e sua conta na venda de seu Pinto era a mais variada, não podia deixar de se aceitar como verdadeira a hipótese, se não da sua nobreza, ao menos que na terra natal tivera uma posição de abastança que lhe permitira refugiar-se em Barbacena com alguma coisa de seu.

É preciso dizer que não viera ao azar para a cidade, viera diretamente, a convite de um amigo, que já morava em Barbacena e que soubera dos perigos que corria.

Este amigo chegara em 1910, para professor do Ginásio, chamava-se doutor Hermann e fora companheiro de meninice e universidade do doutor Tauchnitz.

Conhecia, por um desses caprichos da cultura germânica, esplendidamente a vida brasileira, e ao ficar tuberculoso em Hamburgo, rumara para Barbacena, certo de que escaparia.

Mas três anos depois, um ano após a chegada do amigo, uma hemoptise o levou, numa tarde radiosa.

Eram amigos, eram. Conversavam muito, mas com tão largos silêncios, como se estivessem calados. Uma palavra apenas bastava para que um compreendesse tudo o que o outro queria dizer.

Barbacena sorria dos dois estranhos amigos. Iam pela rua, iam pelo campo em passeios depois do jantar, que era cedo, três ou quatro horas, cada um com seu livro e seu charuto acendendo e apagando.

Como Hermann era baixo, de pernas curtas, com uma adiposidade que não lembraria nunca um tuberculoso, em pouco mais de quinhentos metros de trajeto estavam de tal modo distanciados que por ninguém passaria a ideia de que estavam passeando.

E os mais amáveis cumprimentavam o professor da dianteira:

– Boa tarde, senhor barão.

– Boa tarde, senhor – levantava ele os olhos do livro.

– Sempre lendo, senhor barão?

– Não, senhor. Passeando com doutor Hermann.

O espetáculo da dor do doutor Tauchnitz, quando morreu o amigo, calou nos corações barbacenences. Nem uma lágrima, nem um mover de músculo na face muito branca, nem um gesto despropositado.

Sério e digno, acompanhou o amigo ao cemitério da Boa Morte. Sério e digno apertou a mão dos que o cumprimentaram no cemitério, como se fosse parente do doutor Hermann. Sério e digno voltou para casa, no outro dia deu aula, e continuou saindo todas as tardes depois do jantar, de charuto e livro, para passeios solitários, mas nos quais talvez sentisse ao lado a presença do amigo. Sério e digno respondeu a quem lhe perguntou se haveria missa de sétimo dia:

– Não, senhora. Doutor Hermann não acreditava.

Doutor Hermann morrera solteiro. A mulher do barão era incorpórea. Ninguém a via na rua. Vislumbrava-se a sua bela cabeleira loura e solta pelos cortinados brancos do chalé. E somente alguns vizinhos tinham o privilégio de conhecê-la por cumprimentos através das cercas de chuchu, quando ela descia à horta para cuidar das suas hortaliças.

Doroteia era o elo entre a família do barão e a cidade. Era amável, sorridente, meiga e adorava gatos. O chalé do barão se tornara uma espécie de depósito de quanto gato deserdado houvesse na cidade. As portas tinham gateiras para o livre trânsito dos bichanos.

Poucos meses de chegada, Doroteia já manejava a língua com tanta facilidade que ninguém duvidaria se dissesse que nascera ali.

Quando o primeiro navio brasileiro foi a pique, o barão entrou no Ginásio com a mesma tranquilidade, mas ao subir para o estrado não abriu a pauta de presença. Colocou sobre ela a grande mão branca, na qual usava um anel de sinete, e sem olhar para ninguém, como se dirigisse a um Deus de que só ele soubesse a existência, disse:

– Senhores, eu sou alemão. Por algum motivo não estou na minha pátria. Agora sucederam fatos desastrosos. Acredito que o governo do Brasil saberá agir como deve. Por mim, senhores, morrerei em Barbacena. Mas de hoje em diante não lhes poderei dar aulas.

Nada mais disse naquele momento, nem depois. Cumprimentou os alunos, voltou para sua casa, donde só saía agora para os passeios no campo.

Mas quando foi da declaração de guerra e das manifestações populares de represália, alguém foi procurá-lo, solicitando que fugisse. Ele respondeu:

– Fugir por quê, senhor? Eu não fiz mal a ninguém.

– Sim, mas o senhor é alemão.

– Mas não fugirei, senhor.

E não fugiu. Apenas durante uma semana não fez o seu passeio, mas ficava à janela fumando seu charuto, lendo seu livro, vendo a tarde morrer.

No primeiro dia de manifestações, todos os colégios se fecharam. No segundo, porém, as aulas voltaram a funcionar e havia preleções de cada professor sobre a gravidade do acontecimento e a certeza de que seriam aniquilados os agressores do Brasil.

A diretora do Grupo mandara um recado ao barão, dizendo que achava prudente que a menina Doroteia não fosse às aulas, pelo menos naqueles dias mais próximos, porque ela não poderia evitar uma atitude desagradável por parte dos colegas, embora, estava visto, uma criança nada tivesse com os acontecimentos que se desenrolavam.

Mais uma vez o barão usou da dignidade: respondeu à diretora que a menina Doroteia iria à aula porque ela era uma aluna do colégio e uma aluna do colégio não poderia faltar quando houvesse aula; mas que a permanência da filha no Grupo não poderia ser imposta por ele, nem pela diretora, mas sim por seus colegas.

E Doroteia, tal como nos outros dias, de mochila e tranças apertadinhas, marchou para o Grupo Escolar. Junto com os demais alunos, que se afastaram dela um tanto para ser notados, cantou o Hino à Bandeira, ao hastearem a bandeira.

E quando a turma em fila entrou na sala do segundo ano, ela esperou que todos entrassem e se sentassem para entrar então.

Entrou, parou em frente à turma e perguntou:

– Vocês se incomodam que eu continue na escola?

Houve um silêncio, um rápido silêncio, logo quebrado por uma vozinha que gritou do fundo da sala – não! – e logo um enorme não! encheu a sala toda.

E Doroteia de pé começou a chorar.”

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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