O bem e o mal, de mãos dadas, na ciência

(Fritz Haber, 1868-1934)

Nem todas as “invenções” que beneficiaram a humanidade foram desenvolvidas por pessoas que pensavam no “bem” como objetivo.

Fritz Haber foi um cientista aclamado por sua descoberta, juntamente com Carl Bosch, do método para síntese do amoníaco, percursor do nitrato dos fertilizantes. Isso foi antes da I Guerra. Receberia o Nobel de Química em 1918.

Era casado com Clara Immerwahr, a primeira mulher a receber o título de Doutora pela Universidade de Breslau. Seu casamento com Haber encerrou sua carreira, embora permanecesse uma personagem oculta do sucesso do marido.

(Clara Immerwahr, 1870-1915)

No entanto, tende-se a ignorar o papel de Haber como criminoso de guerra, durante a Primeira Guerra, ao candidatar-se para resolver o impasse da proibição do uso de gás lacrimogêneo, criando o gás cloro, que por ser mais pesado que o ar poderia ser espalhado no chão e levado pelo vento, eliminando o uso de projéteis e burlando o tratado existente.

Benjamín Labatut resume essa faceta criminosa de Haber, no texto abaixo:

“O primeiro ataque com gás da história arrasou as tropas francesas e argelinas entrincheiradas perto da pequena cidade de Ypres, na Bélgica.

Ao acordar na madrugada de quinta-feira, dia 22 de abril de 1915, os soldados viram uma enorme nuvem esverdeada que deslizava na direção deles pela terra de ninguém.

Duas vezes mais alta do que um homem e tão densa quanto a névoa invernal, estendia-se de um lado a outro do horizonte, ao longo de seis quilômetros.

Na sua passagem, as folhas das árvores murchavam, as aves caíam mortas do céu e a grama se tingia de uma cor metálica doentia.

Um aroma similar a abacaxi e água sanitária fez coçar a garganta dos soldados quando o gás reagiu com a mucosa de seus pulmões, formando ácido clorídrico.

À medida que a nuvem se empoçava nas trincheiras, centenas de soldados desabavam com convulsões, afogando-se no próprio muco, com catarro amarelo borbulhando na boca, a pele azulada pela falta de oxigênio.

‘Os meteorologistas tinham razão. Era um lindo dia, o sol brilhava. Onde havia grama, ela resplandecia verde. Deveríamos estar indo a um piquenique, não fazendo o que íamos fazer’, escreveu Will Siebert, um dos soldados que abriu parte dos mil cilindros de gás cloro que os alemães derramaram naquela manhã em Ypres.

‘ (…) O vento continuava a empurrar o gás na direção das linhas francesas. Escutávamos as vacas berrando e os cavalos relinchando.

Os franceses continuaram disparando, mesmo sendo impossível que vissem em quê.

Em uns quinze minutos, o fogo começou a se deter. Depois de meia hora, só disparos ocasionais. Então tudo ficou quieto de novo.

Depois de um tempo, o ar se renovou e andamos para além das garrafas de gás vazias. O que vimos foi a morte total. Nada estava vivo. Todos os animais tinham saído de seus buracos para morrer. Coelhos, camundongos, ratos mortos por toda parte.

O cheiro de gás ainda flutuava no ar, suspenso nos poucos arbustos que restaram.

Quando chegamos nas linhas francesas, as trincheiras estavam vazias, mas a meia milha os corpos dos soldados franceses estavam espalhados por toda parte. Foi incrível. Depois vimos que havia alguns ingleses.

A gente podia ver como os homens tinham arranhado rosto e pescoço, tentando respirar de novo. Alguns tinham disparado em si mesmos.

Os cavalos, mesmo nos estábulos, as vacas, as galinhas, tudo, todos estavam mortos. Tudo, até os insetos estavam mortos.’

O homem que planejara o ataque com gás em Ypres era o criador dessa nova forma de fazer guerra, o químico Fritz Haber.

De origem judia, Haber era um verdadeiro gênio, e talvez a única pessoa nesse campo de batalha capaz de compreender as complexas reações moleculares que tornaram preta a pele de mil e quinhentos soldados mortos em Ypres.

O sucesso de sua missão lhe valeu uma ascensão a capitão, uma promoção à chefia da seção de Química do Ministério da Guerra e um jantar com o próprio Kaiser Guilherme II, mas ao voltar foi confrontado por sua esposa.

Clara Immerwahr não apenas vira o efeito do gás em animais no laboratório, mas estivera muito perto de perder o marido, quando o vento mudou de repente em uma das provas de campo.

O gás soprou direto para a colina em que Haber, montado em seu cavalo, dirigia suas tropas. Fritz se salvou por milagre, mas um de seus ajudantes não conseguiu escapar da nuvem tóxica.

Clara o viu morrer no chão, retorcendo-se como se tivesse sido invadido por um exército de formigas esfomeadas.

Quando Haber retornou vitorioso do massacre de Ypres, Clara o acusou de ter pervertido a ciência ao criar um método para exterminar humanos em escala industrial, mas Fritz a ignorou completamente: para ele, a guerra era a guerra e a morte era a morte, fosse qual fosse o meio de infringi-la.

Ele aproveitou sua folga de dois dias para convidar todos os seus amigos para uma festa que durou até a madrugada, no fim da qual sua mulher desceu até o jardim, tirou os sapatos e disparou no próprio peito com o revólver de serviço do marido.

Ela morreu dessangrada nos braços do seu filho de treze anos, que correu escadas abaixo ao escutar o tiro.

Ainda em estado de choque, Fritz Haber foi obrigado a viajar no dia seguinte para supervisionar um ataque de gás no front oriental.

Durante o resto da guerra continuou refinando métodos para espalhar o veneno com maior eficácia.”

Depois do armistício de 1918, Fritz Haber foi declarado criminoso de guerra pelos Aliados, apesar de eles terem utilizado o gás com o mesmo fervor que os alemães.

Haber fugiu para a Suíça, onde recebeu a notícia de que tinha obtido o prêmio Nobel.

O ser humano, além de pragmático, é cínico. Não pode ter sido essa a ideia de se criar um ser à imagem de Deus.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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