Amigos queriam saber minha opinião sobre o “carão” que o rasputin, digo, o escritor Olavo de Carvalho, considerado guru bolsonarista, fez ao presidente e cercanias:
“Quer levar um processo de prevaricação da minha parte? Se esse pessoal não consegue derrubar o seu governo, eu derrubo. Continue inativo, continue covarde e eu derrubo essa merda desse seu governo, aconselhado por generais covardes ou vendidos”, ameaçou.
Ora, concluí que meu tempo não deve ser usado para comentar as trapalhadas diárias desse governo. Não é um assunto político, propriamente, talvez psicanalítico.
Não adianta tentar entender esse experimento de ‘anarquismo de direita’ lendo Maquiavel, Isócrates, Erasmo de Roterdã, Mazarino, Frederico da Prússia e outros pensadores políticos.
Quem pode esclarecer o que se passa em Brasília, talvez seja Nelson Rodrigues, o moralista indecente, com suas crônicas sobre fidelidade. A falsa moral, hipocritamente escondida nas imposturas sociais, é escancarada em deliciosas histórias, como a que segue:
Infidelidade
(Nelson Rodrigues)

O amigo sentou-se a seu lado e não foi direto ao assunto. Primeiro, fez o preâmbulo:
— Tu sabes que eu sou do teu peito, não sabes?
— Adiante. E Euzébio, pigarreou:
— Bem, o caso é o seguinte: eu tenho sabido de uns rumores bem desagradáveis.
— Que rumores? Fala!
O outro olhou para os lados e baixou a voz: “Tens confiança na tua mulher?” Houve um lampejo nos olhos frios de Orozimbo:
— Como?!… Euzébio ergueu-se, foi até a janela e voltou. Pôs a mão no braço do amigo:
— Orozimbo, eu sei, de fonte limpa, que tua mulher tem um caso, assim, assim. — Silêncio. Orozimbo apanhou um cigarro e o acendeu, com a mão firme. Vira-se para o amigo:
— Olha, Euzébio: você está fazendo uma acusação muito séria. Seríssima. Tem certeza do que está dizendo?
— Tenho, infelizmente. O outro insistiu: “Pergunto se tem certeza absoluta. Tem?!” Suspirou: “Sim.”
E Orozimbo:
— Espera um pouco. O que eu chamo certeza, nesses casos, é a seguinte: você “viu” minha mulher me trair? Viu?
Atônito, balbuciou:
—Não. — E acrescentou: — Mas é o que todo mundo diz…
Orozimbo pôs-se de pé. Foi taxativo:
— Se você não viu, ponha-se daqui para fora, já, antes que eu lhe parta a cara. Seu cachorro indecente!…
Os amigos
Parecia o fim de um afeto de vinte e tantos anos. Desde garotos, com efeito, que Euzébio e Orozimbo conservavam aquela amizade, cada vez mais intensa e mais perfeita.
Quando o Orozimbo namorou Elvira, foi pedir o conselho do outro: “Que tal?” Situação delicada e desagradável. Sabia que a pequena namorara, já, quase que o bairro inteiro. Por outro lado, sentindo que Orozimbo estava apaixonado, não quis desiludi-lo. Foi vago: “Não gosto de dar palpites!” Limitou-se a uma sugestão: “Abre o olho!” O fato é que Orozimbo, numa paixão tremenda, casou-se seis meses depois. Tanto na cerimônia civil como na religiosa Euzébio esteve presente. Na sacristia, abraçou a noiva, de quem se tornara amigo; soprou-lhe ao ouvido:
— Você arranjou o melhor marido do mundo! Elvira, desenvolta e muito linda no vestido de noiva, respondeu, alegremente:
— Só vendo!
Foi só. Depois, Euzébio passou a frequentar, quase diariamente, a residência do casal. O amigo vivia fazendo convites: “Vem jantar hoje com a gente!” E insistiu: “Olha, nós te esperamos, ouviste?”
Ele ia, porque gostava, e, muitíssimo, de conviver com o casal. Houve um momento em que, sem exceção de um dia, jantava com os dois, de domingo a domingo. Os vizinhos pasmavam para tamanha assiduidade. Fazia-se o comentário, não isento talvez de malícia: “Mas que amizade!” E, um dia, no meio do jantar, a três, a própria Elvira, na sua inconveniência simpática, virou-se para Euzébio:
— Queres saber duma? Como estás sempre aqui, sempre conosco, sabe que, às vezes, eu penso que tenho dois maridos? No duro?…
Orozimbo estourou numa gargalhada incoercível. Euzébio riu também, mas com um certo constrangimento. Rubro, teve a exclamação: “Que piada infame!” Mas Elvira continuava, numa festiva irresponsabilidade:
— Ficou vermelhinho! Vermelhinho!…
O íntimo
E, pouco a pouco, o Euzébio, que era a própria estátua do escrúpulo, foi vendo certas coisas que o faziam pensar. Por exemplo: entrava, naquela casa, com uma liberdade de marido. Criou, para si mesmo, o problema: “Que dirão os vizinhos?” Por coincidência, julgou perceber certos sintomas na vizinhança. Quando passava, à noitinha, para jantar com os amigos, perguntavam: “Já vai, hein?” Talvez não existisse nenhuma maldade consciente. Mas ele, com a pulga atrás da orelha, julgava perceber malícia onde só havia cordialidade. Uma tarde, chegou, por infelicidade, muito antes do amigo. Sentado, na sala, diante de Elvira, coçava a cabeça, num desconforto evidente. Acabou não se contendo:
— É uma situação meio pau, Elvira.
— Por quê?
— Pelo seguinte: há limites para um amigo. Afinal de contas, o simples amigo não é como o marido. Meu caso, por exemplo. Eu não devia estar aqui, sozinho, com você. Não está direito! Não está certo!…
Ela fez um verdadeiro escândalo: “Ora, não amola, Euzébio! Tira o cavalo da chuva!” Interrogava-o: “O que é que não está direito?” Ele, de mãos nos bolsos, exaltado, congesto, dizia: “E a vizinhança? Sabe como é esse negócio! Nada mais delicado que a reputação de uma mulher!” Teimava: “Eu tenho que espaçar as minhas visitas!” Discutiram, cada qual mais irredutível que o outro, na defesa dos seus pontos de vista. Elvira foi categórica:
— Queres que te diga uma coisa? A vizinhança que vá tomar banho, que vá para o diabo que a carregue! Eu não tenho que dar satisfação de minha vida a ninguém! — e repetia, inflamada: — a ninguém!…
Os filhos
Talvez fosse mais interessante que Euzébio fincasse pé, e, de fato, espaçasse as visitas. Mas, se por um lado era escrupuloso, por outro, era sentimental, de alto a baixo. Muito afetivo, sentiu necessidade daquele afeto que fazia parte de sua vida. Continuou comparecendo, todas as noites, para o jantar. Aos domingos, o casal o requisitava para o almoço também. E lá vinha ele feliz e inquieto. De vez em quando, Elvira — sempre na frente do marido — insistia na blague que o amargurava: “Olha o meu segundo marido! Olha o meu segundo marido!” E, assim, passam-se os anos. Elvira teve um filho e depois outro. Euzébio foi padrinho do primeiro e um tal de Linhares, padrinho do segundo. Pois bem. De repente, há o episódio, já referido. Euzébio que, na véspera, jantara com marido e mulher, amicíssimos de ambos, entra no escritório de Orozimbo e diz o que sabe. Corrido de lá, desapareceu, sucumbido. De noite, em casa, Orozimbo entra amargo, e envelhecido. Faz um comentário que a mulher não percebe:
— Ninguém presta! Ninguém vale nada! É um caso sério!…
Os dois homens
No dia seguinte, Elvira perguntou: “Quedê o Euzébio?” Riu, amargo: “Morreu!” E ela, num muxoxo: “Você é tão sem graça!” Orozimbo suspirou:
— Estou desconfiado de que ele não virá nunca mais. E foi só. Durante uns quatro dias, não se falou, naquela casa, no desaparecido. Por fim, Elvira não se conteve. Uma tarde depois do almoço, maquilou-se toda, pôs o melhor vestido e apareceu no emprego de Euzébio. No corredor, conversaram. Inicialmente, ele quis ser enérgico: “Não quero conversa com a senhora!” Então, durante uns cinco minutos, ela falou, baixo, mas veemente, sem que ele, pálido, a interrompesse: “Quer conversar, sim senhor!” Desafiou-o: “O que você tem é medo de mim, percebeu?” Com um olhar intenso, continuou: “Gosta de mim e foge. Afinal de contas, você é ou não é homem? Responda.” Com os olhos marejados, Euzébio contou a visita que fizera ao marido. E, diante dessa mulher tão fresca e linda, que se oferecia, perdeu a cabeça; disse palavras duras: “Como se pode ser tão cínica? Imagina se ele soubesse que é a mim que você persegue?” Durante alguns momentos, olharam-se apenas, num atormentado silêncio. Ela perguntou, afinal:
— E se ele tivesse acreditado, hein? Se tivesse me dado um tiro? Repetiu, com um ar de louco: “Um tiro?” E, então, pensando em que poderia ter sido o causador de sua morte, teve uma crise súbita e irresistível. Trincou as palavras nos dentes: “Eu não quero que morras! Não quero!” Estava deserto o corredor. Numa sofrida ternura, agarrou-a, ali mesmo, beijou-a, em delírio. No intervalo de um beijo para outro, gemeu: “Sou um canalha! Sou um canalha!”
O marido
Não resistia mais. Dizia de si para si: “Eu avisei e se ele não acreditou, bem feito.” Passaram a se encontrar num apartamento, em Copacabana. Era um amor sem felicidade. Em meio dos beijos mortais, ele esbravejava: “Eu sou o último dos homens e tu és a última das mulheres!” Esta grandiloquência aplacava, um pouco, o seu remorso.
Quanto a ela, tinha um estremecimento de volúpia ao ser chamada “a última das mulheres”. Pedia mesmo: “Diz desaforo! Diz!” Até que, um dia, Orozimbo vai procurá-lo no escritório. Foi sóbrio e definitivo: “Eu sei de tudo. E não a mato, sabes por quê? Porque a mãe dos meus filhos é sagrada.” Lívido, Euzébio ergue-se; disse: “Estou às suas ordens.” E o outro, firme: “Também não te mato, porque seria atingir a mãe dos meus filhos.” Baixou a voz, cordial:
— Mas olha: eu não sou o único traído; tu também o és. — Pausa e acrescenta: — Ela me trai contigo e a ti, com o Linhares. Percebeste?…
Retirou-se, vingado. Então, sozinho, no corredor, Euzébio caiu de joelhos. Com o rosto mergulhado nas duas mãos, soluçava como uma criança.

(dss, 11 junho 2020)
Amei, não conhecia esse conto. Que perfeita analogia. Eis o ser humano!
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