Sobre lobos e cordeiros

“Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, portanto, prudentes como as serpentes e simples como as pombas. Cuidado com os homens, porque eles vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas.” (Mateus 10, 16-17)

Várias fábulas foram escritas sobre lobos e cordeiros, evidenciando como os detentores da força não toleram argumentações. Esopo (século VI a.C.) foi pioneiro, seguido por Fedro (15 a.C. – 50 d.C.), que latinizou muitas de suas estórias. No século XVII, Jean de La Fontaine as restaurou com elegância e fluência. No Brasil, tivemos uma versão de “O lobo e o Cordeiro” feita no início do século XX por Juó Bananere, que expressava o linguajar ítalo-paulista.

No terceiro centenário da morte de La Fontaine, o poeta Nelson Ascher (65 anos) fez uma contextualização da fábula no cenário nazista. O nome do cordeiro é Baranówicz (sobrenome polonês derivado do radical eslavo ‘baran‘, “cordeiro”); o lobo chama-se Wolfgang (nome alemão formado com ‘wolf‘, “lobo”).

“Bebia água no Vístula um cordeiro/ chamado Baranówicz, quando um lobo,/ coronel Wolfgang, veio e, sobranceiro,/ lhe disse:

– Você pensa que sou bobo,/ que não o vejo envenenando o rio/ há muitos anos e espalhando a Peste?/

– Mas nós morremos séculos a fio,/ também, de causa igual.

– Não me moleste/ com esse irrelevante pormenor./ Vocês são todos ricos e eu sou pobre.

– Como sou rico se não tenho um cobre?/ Os Senhores controlam a maior/ empresa, enquanto estou desempregado.

– Você conspira e apoia, do outro lado/ do Vístula, o inimigo. Não insista,/ capitalista-ovino-bolchevista.

– Mas os ursos de lá, seus caros primos,/ nos comem com desculpa semelhante …

– Você, cosmopolita como vimos,/ não é nada ariano.

– Como assim?/ Perdoe-me, não queria ser pedante, mas ‘aries‘ é carneiro em bom latim.

– Sei disso e, embora seja um lobo culto,/ um ‘Kulturwolf‘, não lhe darei indulto/ porque vocês mataram Jesus Cristo.

– Foi a loba romana que fez isto/ e mesmo que um cordeiro fosse o algoz/ de quem, como ‘Agnus Dei‘, era um de nós,/ seria assunto nosso.

– Ovino arisco/ e cínico, já chega de pilhéria./ Ordens se cumprem: vamos, pois no aprisco/ de Oswiécin há trabalho que libera./ Farei, após havê-lo tosquiado,/ com sua pele de cordeiro um manto/ para aquecer-me neste inverno enquanto/ nós lobos conquistamos Stalingrado.

Desprezando os balidos derradeiros/ de Baranówicz – livres dos cordeiros! -,/ os outros ruminantes, todavia,/ pastavam perto sem perder a calma./ Wolfgang, formando-se em filosofia/ anos depois (com tese acerca ‘D’Alma Lupina e seu Transcendental Destino’),/ reingressou, pela esquerda, na política/ (não sem antes fazer sua autocrítica)/ para conter o imperialismo ovino.”

Mais recentemente, José Paulo Cavalcanti (no blog de Ricardo Antunes) comentou:

“Uma das mais conhecidas fábulas de La Fontaine, O Lobo e o Cordeiro, conta história de cordeiro que bebia num riacho. O lobo, faminto, reclama: “Como é que tem coragem de sujar a água que eu bebo?” O cordeiro explicou ser impossível, “por beber uns 20 passos mais abaixo”. O lobo diz “Você andou falando mal de mim no ano passado”. E o cordeiro, “No ano passado eu ainda não havia nascido”. “Se não foi você foi seu irmão”. “Mas sou filho único”. Não adiantou. E acabou sendo almoço do lobo. (…)

A moral é: ‘A razão do mais forte é sempre a melhor’. Mas, nos dias que correm, há uma moral secundária. A da verdade pós-moderna. Segundo a qual mais importante que ter razão é dizer que tem razão.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

Um comentário em “Sobre lobos e cordeiros

  1. Que belo texto!!!. O escritor aqui passeia desde a Bíblia Sagrada até os mais nobres filósofos. O texto é claro, conciso e atual. Todos sabemos da soberania do lobo em relação ao cordeiro. O lobo é sagaz ,devorador e agil. O cordeiro e manso, pacífico e sem agilidade alguma. Presa fácil para ser devorada. Acrescentaria ainda o que já disse alguém “onde há força não há resistência “. Não nos parece que estamos desde muito tempo não só no nosso País, mas no mundo vivendo a fábula do lobo e do cordeiro. “Quem pode mais chora menos”. Fico por aqui, o texto diz tudo. Basta fazer uma leitura e verás que quem é cordeiro jamais chegará a condição de lobo.

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