
O pessimismo de Günther Anders, tratado num texto anterior, tinha um aspecto positivo: o de que o anúncio do destino apocalíptico da humanidade possa ser a motivação ética e política necessária para que se atrase a marcha do tempo a fim de que o tempo mesmo se
conserve.
Sua preocupação central era a transformação que o mundo sofre com a tecnologização, na qual somos produtores e vítimas. Falava isto antes da atual revolução digital e da ascensão das redes sociais.
Lembrava o poema de Goethe escrito em 1797, “O aprendiz de feiticeiro”, para nos alertar sobre o risco de que a coisa criada assuma-se como autônoma – coisa que poucos humanos são.
No poema, um aprendiz de feiticeiro entediado por ter que limpar o chão, resolve, na ausência do seu mestre, fazer um encantamento para que seu esfregão trabalhe sozinho. Logo as coisas saem do seu domínio e ele se dá conta de que não sabe como para-lo.
Imagina que se parti-lo a mágica será encerrada, porém cada parte se transforma em novos esfregões que não param de espalhar água. Finalmente, o velho feiticeiro volta e rapidamente quebra o feitiço.
“Espíritos poderosos devem ser convocados apenas pelos mestres que os dominam“, diz o velho feiticeiro.
Anders comenta:
“Sem se preocupar com as consequências de sua ação – pois o que lhe interessava era apenas o desejo de poder e a utilidade imediata de sua vassoura metamorfoseada, não a fórmula da retrometamorfose – o aprendiz pronunciou o feitiço e ordenou à máquina conseguir água para encher a banheira.
E, a vassoura metamorfoseada obedeceu: passou a trabalhar de forma autônoma ou, mais corretamente, obedeceu bem demais; na verdade, obedecia terrivelmente bem, pois, por mais autonomamente que pudesse desempenhar seu trabalho, não era autônomo o suficiente para renunciar à sua autonomia; em suma: era tão ignorante do caminho de volta quanto seu mestre, o aprendiz, que o havia iniciado.
Automaticamente e sem o menor interesse pelos efeitos de sua atividade, a vassoura foi até a fonte para encher seu balde, voltou para esvaziá-lo, para cima e para baixo, sem parar.
Foi indiferente ao fato de que suas torrentes de água continuaram a aumentar até se tornarem uma inundação, que ameaçavam inundar a casa e a rua. Não viu isso nem por um momento; ao contrário de seu pretenso mestre, o aprendiz de feiticeiro, que começou a discernir o que havia acionado, ou seja: havia conjurado um espírito, sem saber como se poderia livrar dele.
Essa sua intuição tardia e o pânico que surgiu, entretanto, não lhe serviam e, pior ainda, pois quando se lançava sobre seu criado, tão terrivelmente laborioso, para interromper sua atividade antes que fosse tarde e tentar neutralizá-la, cortando-a pela metade, só conseguiu obter o contrário do resultado que buscava: em vez de acabar com a emergência, dobrou-a; pois cada metade do servo imediatamente se metamorfoseava em um servo completo e, em vez de um, eram dois, que se ocupavam em aumentar o dilúvio.
Quase afogado e nos últimos momentos de desespero, o aprendiz gritou para seu mestre. O mestre veio em seu auxílio e, ao pronunciar o feitiço da retrometamorfose, ‘seids gewesen’ (voltar ao que era antes), ele parou a catástrofe, o que constitui um feliz final que o aprendiz nunca teria ousado esperar e com o qual nós, e nossos contemporâneos, não podemos nos permitir contar; mas aqui estou me adiantando.”
Marx e Engels, no Manifesto Comunista, também aludem ao poema de Goethe, comparando a relação sociedade-capital com a “do feiticeiro que não consegue mais controlar os poderes do mundo que criou através de seus feitiços”.
As modernas fontes de riqueza, como se fossem criadas por uma estranha magia, são transformadas em fontes de querer.
“… esse mundo milagroso e mágico também é demoníaco e pavoroso, saindo dos trilhos e dos controles, ameaçando e destruindo cegamento enquanto se move.” (Marshall Berman)