Produção e extração de valor

“Um cínico é aquele que sabe o preço de tudo, mas não sabe o valor de nada.” (Oscar Wilde)

De acordo com a Função de Produção da escola neoclássica, a divisão da renda entre lucros e salários é proporcional à contribuição dos fatores. Ou seja, é uma divisão justa e meritocrática. Está certo isso, ou só é aceito como verdade?

A riqueza, ao longo do tempo, sempre esteve mais associada ao poder do que ao consumo e ao conforto de seus detentores. Reis e nobres viviam no luxo, mas (obviamente) sem o que hoje são considerados itens indispensáveis de conforto, como energia elétrica, água encanada ou … internet.

As realezas diminuíram, mas os aristocratas do poder continuam acumulando riquezas.

Os autores econômicos clássicos sustentavam que o valor é determinado pelo trabalho envolvido na sua produção. O utilitarismo (adotado pela teoria neoclássica), logo depois passou a ver o valor de um bem como subjetivo; seria determinado pela “utilidade” de seu desfrute.

O que de fato é produção de valor e o que é mera extração? A riqueza é distribuída de forma justa, ou de maneira disfuncional?

Esse é tema de um dos indispensáveis livros de Mariana Mazzucato (foto), “O valor de tudo”.

Uns produzem, outros se apropriam; essa pegadinha vem acelerando a desigualdade no mundo, gerando uma acentuada concentração da renda (e da riqueza – renda acumulada).

Joseph Stiglitz também focou nesse ponto, no livro “Povo, Poder e Lucro”: “muitos fizeram fortuna através da exploração de outros em vez de criar riqueza”.

Ela dá um exemplo: entre 1975 e 2017, o PIB real dos EUA triplicou (saiu de US$ 5,5 trilhões para 17,3). A produtividade cresceu cerca de 60%. Porém, o salário-hora real da grande maioria dos trabalhadores ficou estagnado ou até diminuiu. Ou seja, por quatro décadas uma minúscula elite capturou quase todos os ganhos!

Há muitas lorotas neoliberais que tentam justificar o “fenômeno”, misturando atividades produtivas com outras que apenas extraem valor – em nome da criação de valor.

Bancos, indústrias farmacêuticas e tecnológicas tendem a ser os principais beneficiários dessas narrativas.

Logo após a crise de 2008, o presidente do Goldman Sachs declarou que “o pessoal do Goldman Sachs está entre os mais produtivos do mundo”! Esse banco, que foi multado em US$ 550 milhões – por seu papel na crise – e, foi socorrido pelos contribuintes americanos com US$ 125 bilhões, lucrou 63 bilhões entre 2009 e 2016 (25% sobre o faturamento)!

O setor financeiro, que até os anos 1960 não era considerado “produtivo” (era apenas intermediador de riquezas), passou por uma repaginação e agora é tido como “criador de valor”. Essa transformação ocorreu concomitantemente com a desregulamentação do setor (quanto dinheiro os bancos podiam emprestar, taxas de juros que podiam cobrar e produtos que podiam vender, principalmente os derivativos).

Com esse status, a “financeirização” se estendeu a outros setores da economia, principalmente com a recompra de ações – que permite valorizar as ações que altos executivos têm direito em programas de remuneração variável.

Outra consequência foi a adoção do conceito de “maximização do valor do acionista“, que surgiu nos anos 1970. Esse mantra é prejudicial ao crescimento econômico sustentável, por encorajar o ganho a curto prazo para acionistas em detrimento do ganho a longo prazo para a empresa. Ganham também os gestores de fundos. A alegação é que os acionistas são os que assumem os maiores riscos: os riscos que a sociedade e o meio ambiente correm são ignorados.

Empresas como a Apple dizem que sua contribuição para a sociedade não deveria vir de impostos (que pagam – enquanto não encontram paraísos fiscais), mas do reconhecimento de seus aparelhos. Não falam que a tecnologia por trás (internet, GPS, tela sensível ao toque, alguns algoritmos de busca, Siri …) foi financiada por instituições públicas – impostos pagos pelos contribuintes.

“Parece-me que precisamos começar por vigiar os criadores de fábulas, separar as boas das más. Em seguida, convenceremos as amas e as mães a contarem aos filhos as que tivermos escolhido e a modelarem-lhes a alma as suas fábulas muito mais do que o corpo com as suas mãos.” (Platão)

As versões que se contam fazem a mentalidade média da sociedade, sabia Platão. Daí, ele não gostava de mitos a respeito de deuses malcomportados.

A isso se chama “performatividade“: o modo como falamos sobre as coisas afeta o comportamento e, por conseguinte, a forma como as teorizamos.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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