
Estou envelhecendo e a impressão que tenho da vida cabe num substantivo. Não vou dizê-lo aqui, só no meu epitáfio; ainda tenho compromissos com esta vida. Não quero estar certo, pois isto é perigoso. Resta uma voz que mistura esperança e dor, o que dá um certo cansaço.
“Estes fragmentos, eu os recolhi entre minha ruínas”, como dizia T. S. Eliot.
Um caríssimo amigo, Fábio Adiron, me indicou um poeta: Juan Gelman (foto). A vida é descoberta!
A vida de Gelman foi marcada pela estupidez dos que se acham superiores às pessoas comuns. Às vezes por portarem armas e usarem fardas. Os “patriotas” que ainda acreditam numa ditadura podem até dar risadas das poesias de Gelman. Mas, para mim, estupidez rima com ridículo.
Gelman foi obrigado pelos militares argentinos a abandonar sua pátria, deixando filhos, amigos e companheiros que foram torturados, desaparecidos, humilhados e uma nação órfã de seus maiores poetas.
Um de seus filhos e sua esposa, grávida, foram sequestrados pelos militares em 1976. Os restos mortais de seu filho só foram encontrados em 1989. Sua nora nunca foi encontrada. A neta só foi achada quando tinha 23 anos; havia sido adotada por uma família de militares uruguaios.
O que mais temia era o esquecimento, que banaliza o mal.
“Nós arrastamos os pés em rios de sangue seco, almas que se apegaram à terra por amor; não queremos outros mundos senão o da liberdade e esta palavra não a palavreamos porque sabemos que faz muita morte, que se fala enamorado e não de amor; se fala claro, não de claridade, se fala livre, não de liberdade.” (Gelman)
Chuva
“hoje chove muito, muito,/ e parece que estão lavando o mundo./ Meu vizinho do lado contempla a chuva/ e pensa em escrever uma carta de amor/ uma carta à mulher que vive com ele/ e cozinha para ele e lava a roupa para ele e faz amor com ele/ e parece sua sombra./ Meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher/ entra em casa pela janela e não pela porta/ por uma porta se entra em muitos lugares/ no trabalho, no quartel, no cárcere,/ em todos os edifícios do mundo/ mas não no mundo/ nem numa mulher/ nem na alma/ quer dizer/ nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim.
Como hoje/ que chove muito/ e me custa escrever a palavra amor/ porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/ e somente a alma sabe onde os dois se encontram/ e quando/ e como/ mas o que pode a alma explicar?/ por isso meu vizinho tem tormentas na boca/ palavras que naufragam/ palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na mesma noite em que amou/ e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá/ como o silêncio que há entre duas rosas/ ou como eu/ que escrevo palavras para voltar ao meu vizinho que contempla a chuva/ à chuva/ ao meu coração desterrado”
A tormenta
“temos pés para irmos/ para não irmos/ ninguém nos pede nada/ nós nos pedimos/ nos abraçamos/ ficamos/
amor que entre duas luzes como bêbado vai/ tudo é centro e joia da dor.”
O pacto
“quando nadava em doce escuridão, nada sabia do pacto de nascer. A vida é, certamente, uma de suas cláusulas. Também a morte e a dor, o amor, a alegria, o simples padecer. E o estrago que fazemos, o estrago que nos fazem, o espelho celeste onde olhamos nosso estar sobre a terra, a ele nos prende a corrente que se balança sobre todos os abismos do mesmo abismo: ser.
Quando é delícia este jugo? ou deleite, abandono de si, profundo sangue? Quando é cosmos meu pedacinho de papel, tão escrito e rabiscado por todos e por mim? Que diz o livro humano? Em que balança pesam essas tintas? As palavras do puro começar?
A vida é ato que não conhece e cada ato, introdução ao outro não saber. A inteligência e o instinto acendem fogos na noite, mas é do infinito que estamos exilados. Assim, em teu segredo, cresce a árvore que sonha o sonho onde um galo, uma pedra e a tristeza olham o mundo inteiro e o colocam na boca de um menino para que o sol beba.”