
“O desejo é a essência da realidade.” (Jacques Lacan)
No projeto ético de Espinosa, aparece o conceito de conatus, que vai orientar sua teoria da afetividade. O conatus seria a essência mesma da pessoa, mas também o esforço por ela empreendido para perseverar e expandir sua potência de existir e, ao mesmo tempo, um princípio de conservação e de afirmação dessa potência.
Qualquer que seja a forma como nos apresentamos no mundo, ela é potência porque nossos corpos, limitados em extensão e duração (modos, no dizer de Espinosa) significam manifestações do Infinito no seio do finito.
Resta a questão ética, que seria efetuar nossa potência da mesma maneira que Deus, ou a Natureza, o faz. Afirmar a minha potência é afirmar o que há de divino em mim.
Somos as escolhas que fazemos – consideradas as restrições – na realização dessa potência. Nossa nação também é resultado dessas escolhas coletivas.
Nada é determinístico, tampouco meramente probabilístico. Médias estatísticas não ditam regras; individualmente, as probabilidades não existem: temos nossos instintos, sentimentos, esperanças, medos, confianças, confusões …
Lembrei do filme “A Felicidade não se Compra” (It’s a wonderful life), de 1946, dirigido por Frank Capra. Nele, um homem desiludido e deprimido recebe uma ajuda “divina” para perceber a sua importância nesta vida e ganhar novo ânimo: tem uma visão de como seria seu entorno caso ele não existisse.
Somos o resultado das possibilidades exercidas e das interações contingenciais, ou como dizia Espinosa, observamos nosso conatus, um princípio dinâmico balizado apenas pela causalidade eficiente, que determina as modificações dos atributos da substância.
Vejamos a imaginação de Veríssimo:
Versões de mim (Luis Fernando Veríssimo)
“Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido.
Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (unzinho e eu ganhava a sena acumulada), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste… Agora mesmo, neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz – aliás, o nome do bar é Imaginário -, sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:
– Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo.
E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.
– Por quê? Sua vida não foi melhor do que a minha?
– Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção.
Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia…
– Eu sei, eu sei… – disse alguém sentado ao lado dele.
Olhamos para o intrometido… Tinha a nossa idade e a nossa cara; não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:
– Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.
– Como é que você sabe?
– Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me atirei…
Levei um chute na cabeça. Não pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante…
– Ele chutaria para fora. Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado dele, que em seguida se apresentou:
– Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença.
Não seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula.
O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio…
– E o que aconteceu? – perguntamos os três em uníssono.
– Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?
– Você..
– Morri com 28 anos.
– Bem que tínhamos notado sua palidez.
– Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo…
– E ter levado o chute na cabeça…
– Foi melhor – continuei – ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado…
– Você deve estar brincando! – disse alguém sentado à minha esquerda.
Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.
– Quem é você?
– Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.
Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra.. As consequências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração.
Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente.
Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas..
– Quem é você? – perguntei.
– Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.
– E…?
Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo…
Creio que a vida não é feita das decisões que você não toma, ou das atitudes que você não teve, mas sim, daquilo que foi feito. Se bom ou não, penso, é melhor viver do futuro que do passado.
“Porque tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.