
MOTIVO (Cecília Meireles)
Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,/ não sinto gozo nem tormento./ Atravesso noites e dias/ no vento.
Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço/ – não sei, não sei. Não sei se fico/ ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo./ Tem sangue eterno a asa ritmada./ E um dia sei que estarei mudo:/ – mais nada.
O que temos é o momento presente, o que nos resta. Os “problemas” nos cercam para nos lembrar que existimos; alguns graves, outros só ocupação da mente.
Costumava me sentar sozinho à mesa preferida no Bar Savoy, em Recife, e ficar observando as fisionomias dos passantes. Raros estavam alegres, descontraídos; a grande maioria mostrava suas preocupações estampadas nas faces. Era um filme sobre a vida.
Essa vida que nos engolfa em ocupações – tantas sem sentido – e que supostamente nos remete a um futuro incognoscível, se vier.
Sabemos qual foi nosso itinerário até aqui, até o hoje? Sim, é possível lembrá-lo. Mas, ele corresponde a alguma projeção feita nalgum momento? Às vezes sim, alguns trechos. Porém a maior parte de nossa vida foi circunstancial: a origem de nossa família, suas posses e visões, os colegas de escola, as necessidades prementes, os primeiros trabalhos, a formação profissional “escolhida”, o ambiente de trabalho, a conjuntura econômica, a pessoa selecionada para uma vida comum … tudo vai nos empurrando até a realidade atual.
É como ser arrastado num rio, com ou sem correntezas. Para sairmos é preciso saber nadar, embora vez em quando ele nos põe próximo à margem – e a maioria prefere se deixar levar. Noutros momentos, sequer avistamos as margens. Alguns se afogam.
“Foi desde sempre o mar. /E multidões passadas me empurravam/ como a barco esquecido.” (Cecília Meireles)
A esta inércia chamam destino.
“Temos vivido num vácuo, sem referências e sem termos onde nos ancorar nas horas de maior aflição. Talvez em virtude disso, vivemos em crescente estado depressivo”, falava Flávio Gikovate.
EPIGRAMA Nº 2 (Cecília Meireles)
És precária e veloz, Felicidade./ Custas a vir, e, quando vens, não te demoras./ Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,/ e, para te medir, se inventaram as horas.
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa./ Fizeste para sempre a vida ficar triste:/ porque um dia se vê que as horas todas passam,/ e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
DESPEDIDA (Cecília Meireles)
Por mim, e por vós, e por mais aquilo/ que está onde as outras coisas nunca estão,/ deixo o mar bravo e o céu tranquilo:/ quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens./ E como o conheces? -me perguntarão./ – Por não ter palavras, por não ter imagens./ Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras? Tudo. Que desejas? – Nada./ Viajo sozinha com o meu coração./ Não ando perdida, mas desencontrada./ Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte./ Voou meu amor, minha imaginação …/ Talvez eu morra antes do horizonte./ Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra./ (Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!/ Estandarte triste de uma estranha guerra …)
Quero solidão.