
Em nome do bem muito mal já foi e será praticado.
Tendemos a absolutizar tudo que nos importa e achamos que o certo é aquilo no que acreditamos. Tá feito o dissenso. E, como nossa vida só faz sentido se tivermos razão, tá criada a dissidência. E o mundo se fragmenta, se encurrala em nichos ideológicos, religiosos, classistas … identitários.
Estamos saindo de um governo que ridiculariza os sentimentos identitários e podemos viver nos próximos anos o paroxismo de tais reivindicações. Preparemo-nos!
As questões de identidade substituíram as de classe, basicamente após a queda do Muro de Berlim. No começo chamavam a atenção para o racismo e gênero.
A partir dos anos 1980, as pessoas passaram a pensar “eu sou eu, isso é tudo”! Ora, somos partes.
Porém, como percebeu Elisabeth Roudinesco, “o que partia de uma boa posição emancipatória – para mulheres, negros e homossexuais – começou a derivar em direção a posições hostis à liberdade de expressão. Em nome dessas reivindicações, hoje se quer proibir textos e destruir estátuas, por exemplo.”
Lembro do “cancelamento” e hostilidade manifestada por “intelectuais” (de esquerda – há, à direita?) a Antonio Risério por, corajosamente, mostrar que o “politicamente correto” nos levou a negar as diferenças e a encerrar cada qual num ressentimento doentio.
Risério teve a ousadia de mostrar que “o Brasil (mas não só aqui, claro) estava mergulhado em posições sectárias (também na direita repaginada), em fragmentarismos identitários, na ignorância letrada das academias, nas armadilhas do racialismo, no surgimento de novas censuras e no dirigismo político das artes …” aponta Mary Del Priore.
Um chato! Indispensável!
Viver juntos requer que aceitemos as diferenças, não anulá-las.
É preciso que não transformemos a defesa dos espaços de históricos marginalizados (negros, índios, mulheres, homossexuais e outros) num processo de vitimismo, que não edifica, conforme alertaram Bradley Campbell e Jason Manning no livro “The Rise of Victimhood Culture”.
É importante que essas discussões evoluam de forma equilibrada, sem infantilização e imbecilização, como ocorre com os sectários de direita.
É falsa a ideia de que ser encarada como vítima eleva o status moral das pessoas, que agora se fundaria na dor!
O Risério – como pode? – ainda diz que combater expressões supostamente ‘racistas’, como se faz no Brasil, é de uma ignorância atroz, e caracterizaria eugenia verbal!
O português está sendo mudado para que seja neutro, como se gênero gramatical fosse gênero biológico. A ideia é que, supõem-se, as marcações de gênero tem a ver com a dominação patriarcal.
Pode ser, mas não é relevante. A linguista Concepción Company lembra que a língua árabe não tem marcador de gênero e, no entanto, o patriarcado muçulmano é um fato.
No Afeganistão, as língua oficiais não têm distinção morfológica de gênero. Todos são obrigados a dizer “todes”, há milênios. E os talebans, apesar disso, não sabem o que é igualdade de gênero.
E com a crescente (fracionária) sigla LGBTQIAP+ (Lésbica, Gay, Bissexual, Transgênero, Não-binárie (Queer), Gênero fluido (Intersexual), Assexual, Pansexual) o que ocorre? Todos querem visibilidade, distinção? Querem que todos saibam que identidade de gênero, sexualidade, orientação sexual e expressão de gênero não são a mesma coisa?
Pessoalmente, não acho fácil classificar todas essas manifestações:
- Identidade de gênero: É a forma que a pessoa se entende como um indivíduo social, ou seja, a percepção de si.
- Expressão de gênero: É como a pessoa manifesta sua identidade em público, a forma como se veste, sua aparência (corte de cabelo, por exemplo) e comportamento, independentemente do sexo biológico.
- Sexualidade: Está relacionada à genética binária em que a pessoa nasceu: masculino, feminino e intersexual.
- Orientação sexual: Tem a ver com a prática de se relacionar afetiva e/ou sexualmente com outros gêneros.
Bom, ainda há os ‘gOys‘ (ou HSH), aqueles que se relacionam entre si, mas dizem não ser gays.
Complicado.
(Ilustração acima: “Procuro-me”, de Lenora de Barros)
Ótimo artigo. Parabéns.
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