
Acreditar numa possibilidade e transformá-la em “fato”, numa “verdade”, torna-nos reféns da mesma e pauta nossas atitudes. Tudo precisa ser feito de forma a vir confirmá-la.
Darei dois exemplos. O primeiro é uma ficção.
Imagine um lugarejo na fronteira de um império sem nome. Nele, um magistrado cumpre seus deveres cotidianos, esperando a aposentadoria próxima, atuando corretamente, com humanidade na aplicação da justiça.
Surge, então, um certo coronel, oficial de uma misteriosa Divisão da Guarda Civil, guardião do Estado, devoto da verdade.
Esse coronel vem investigar um suposto movimento de sedição entre os “bárbaros” que vivem além das fronteiras imperiais.
Não há indícios de que esta rebelião esteja sendo arquitetada, mas o coronel acredita que sim; segundo ele os revoltosos estão se articulando e precisam ser combatidos.
Ele começa, então, a fazer “interrogatórios” (torturas e mortes) de eventuais “suspeitos”. Os que discordam de suas práticas são silenciados, inclusive o magistrado.
Tamanha repressão, infundada, termina por criar uma verdadeira revolta dos “bárbaros”. O desenlace é o esperado: os bárbaros atacam e dizimam os representantes do império “civilizado”.
A “verdade” do coronel se confirma!
Essa “história” é contada no livro “À espera dos bárbaros”, de J. M. Coetzee (foto). Se não tiver paciência para leitura, veja o filme.
Outro caso, interessante, foi a polêmica sobre o reconhecimento da autenticidade – pela Igreja Ortodoxa – das ossadas da família imperial, assassinada pelos bolcheviques em 1918.
Para os fiéis da Igreja Ortodoxa, Nicolau II era um santo. Ele e família foram canonizados.
Aquele “Nicolau, o sanguinário”, uma das motivações da Revolução, foi se transformando em “santo”. Suas atrocidades e indiferença com a população foram amainadas pela Igreja. Afinal, Nicolau era um grande fiel.
As ossadas encontradas e exumadas tiveram seus DNAs analisados e comparados com os de seus parentes então vivos. Os exames forenses a autenticaram. Mas, a Igreja não os aceitaram.
Como acreditavam que ele é um santo, o que confirmaria que as ossadas eram genuínas seria a ocorrência de “milagres” vinculados àquelas relíquias. Como não havia registros de milagres, não seriam legítimas.
A comprovação científica não importava pois não confirmava as “crenças” da Igreja.
Além disso, muitos clérigos acreditavam que a família imperial havia sido decapitada pelos judeus e os cadáveres, em seguida, mutilados – ritualisticamente! Como as ossadas não apresentavam sinais de assassínio ritual, elas não seriam as da família imperial.
Claro!