
O regime de servidão foi regra na Rússia czarista de 1649 até 1861.
Servidão é um eufemismo para escravidão dos próprios conterrâneos: os camponeses (“mujiques“) eram obrigados a permanecer nas terras onde nasciam, sem direito à sua propriedade, que era dos nobres. Esses camponeses eram, também, propriedades dos aristocratas, que poderiam dispor deles da forma que desejassem – só não podiam matá-los.
Sua abolição, por Alexandre II, acabou levando o país a um verdadeiro caos e tornou-se o fermento para a Revolução de 1917.
Esses mais de dois séculos de servidão esclarecem um pouco sobre as características de subserviência, pobreza e melancolia habituais na maioria do povo russo.
Em 1856, Liev Tolstói escreveu um conto que retrata as relações entre os mujiques e os nobres: “A Manhã de um Senhor”. Mas, seu objetivo era questionar a atitude de se tentar fazer o bem sem se mexer nas estruturas sociais.
Um príncipe, com dezenove anos, estudante universitário, ao voltar à sua aldeia nas férias e se aperceber da vida miserável de seus mujiques decide largar os estudos e se dedicar a melhorar a vida deles.
Escreve uma carta para sua tia, a quem considerava a mulher mais genial do mundo:
“Tomei uma resolução de que dependerá o destino da minha vida. Abandono a universidade para me consagrar inteiramente aos camponeses, pois reconheci ter nascido para isso.
Por Deus, querida tia, não te rias de mim. Pensarás que sou um garoto, e talvez seja; mas isso não me impede de sentir a minha vocação, amar o bem e desejar praticá-lo.
Já te mandei dizer que encontrei tudo numa desordem indescritível. Quando quis por ordem nas coisas, dei-me conta de que o mal provém da má situação dos mujiques e que esse mal só pode remediar-se com trabalho e paciência. (…)
Não terei, porventura, o sagrado dever de me preocupar com esses setecentos homens pelos quais terei de responder perante Deus? (…)
Por que haveria eu de procurar a maneira de ser útil e de praticar o bem noutra esfera quando descobri aqui um dever tão formoso? (…)
Sua tia responde, com habilidade mas diz o que a experiência e o pragmatismo de sua posição lhe impõem:
“A tua carta mais não fez que confirmar que tens um coração de ouro.
Mas, meu querido, as nossas boas qualidades são-nos mais prejudiciais do que as más.
Não pretendo dizer-te que fazes uma tolice, nem que o teu procedimento me penaliza; no entanto, procurarei exercer influência sobre ti por meio da persuasão.
Reflitamos, meu amigo.
Dizes que sentes vocação para a vida aldeã, que podes fazer felizes os teus camponeses e que esperas vir a ser um bom proprietário.
Primeiro: devo dizer-te que só sentimos a nossa verdadeira vocação depois de nos termos equivocado nela uma vez; segundo, que é mais fácil obrar a nossa própria felicidade do que a dos outros, e terceiro: que um bom proprietário deve ser severo e frio, coisa que tu nunca conseguirás, embora pretendas fingir-te assim.
Consideras os teus argumentos indiscutíveis e até os tomas como regras de vida.
Meu amigo: na minha idade já se não acredita em tais coisas, mas apenas na experiência. E a experiência diz-me que os teus planos são pueris.
Tenho quase cinquenta anos e conheci muita gente digna; contudo, nunca ouvi dizer que um jovem rico e dotado de capacidades se enterre numa aldeia a pretexto de praticar o bem.
Sempre pretendeste ser original e a tua originalidade não passa de um amor-próprio excessivo. (…)
A pobreza de uns tantos camponeses é um mal inevitável ou um mal que pode remediar-se sem descurar as obrigações para com a sociedade, para com a família e para conosco mesmos. (…)
Creio que és sincero quando dizes que não sentes ambição, mas estou convencida de que te enganas.
Na tua idade e com os teus meios, a ambição é uma virtude que se converte em defeito e baixeza quando o homem já não é capaz de a satisfazer. (…)
O príncipe seguiu sua resolução. Depois o tempo mostrou que a tia tinha razão prática.
Não dá para assumir a responsabilidade de tornar radiosa a vida dos que sofrem. Dá para ajudar, claro. Porém a vida é de cada um; que esse cada um a desenvolva conforme seus interesses, capacidades e motivações.
As pessoas vivem num contexto. Este pode ser limitante, como era o caso da servidão. Essas limitações precisam ser removidas para que cada um possa melhor exercitar seu caminho.
Persistem, hoje, outras limitações – educacionais e sociais – que reduzem o potencial de realização dos indivíduos. Aí está um campo para florescimento do bem.
(Pintura acima de Vassíli Maksimov, 1881)