
O ser humano evita o toque, o contato, com estranhos. Isso é natural. Essa é a razão principal para as distâncias que se estabeleceram entre nós.
Essa aversão reflete nosso medo ao desconhecido, ao diferente.
Nós, brasileiros (e outros latinos), temos uma característica: ao tomarmos a iniciativa de abordar alguém achamos que o outro já é “conhecido” e já o tocamos, abraçamos …. como se fôssemos antigos amigos. Noutras culturas, essa reserva permanece até, de fato, iniciar-se um laço de amizade ou de melhor conhecimento.
Esse distanciamento nos levou ao realce de diferenças que socialmente são simbolizadas por hierarquias, posições sociais, autoridades, e pela propriedade de bens. Como indivíduos, estamos cientes dessas “diferenças”.
Quando, entretanto, estamos no meio de um grande grupo, numa “massa“, libertamo-nos do medo do contato. E, impressionante, no meio da massa tornamo-nos iguais! Sentimos aos demais como a nós mesmos. É como se fôssemos um único corpo.
A massa anseia por crescer: todas as fronteiras ao seu crescimento são removidas. Todos são bem vindos.
Quando ela para de crescer começa seu declínio, sua desintegração. Ela precisa continuar crescendo, ou morre. Ela pressente o risco de desintegração quando se diminui o oba-oba. Atua como um câncer. Quando para de crescer, ele ou o corpo está morrendo.
Há o tipo de massa “fechada”, clubes reservados, que não sentem essa necessidade tumoral de crescimento. É seleto – iguais a partir de requisitos comuns. Neste tipo a preocupação é com a durabilidade; perenidade se possível.
As igrejas são de que tipo? Abertas, na sua maioria; mas há as seitas, algumas muito seletivas, requerem até a doação da alma.
Os argumentos acima estão alinhados com a visão de Elias Canetti, no seu clássico “Massa e Poder“, relembrado pelo amigo Fábio Adiron.
Sobre o efeito das massas, já escrevi por aqui sobre as ideias pioneiras de Gustave Le Bon.
Sobre as multidões, percebia que elas são pouco aptas ao raciocínio, mas muito aptas à ação: “A atual organização torna a força delas imensa. Os dogmas que vemos nascer rapidamente adquirirão o poder dos velhos dogmas, isto é, a força tirânica e soberana que descarta qualquer discussão”, dizia (em 1895!).
Para ele, a principal característica das massas é a fusão dos indivíduos em um espírito e em um sentimento comuns, fusão esta produzida de um modo inteiramente irracional e que demandava, para tanto, a direção de um líder. Isso inspirou alguns totalitarismos.
Marx, por outro lado, procurava mostrar o caráter subversivo das multidões; este seria o sinal evidente de uma mudança que levaria a uma nova ordem social. O fenômeno das multidões seria então a expressão viva daquilo que considerava como “o motor da História”, ou seja, a luta de classes.
Porém, mesmo no regime bolchevique, prevaleceu a dica de Le Bon, ou seja, a tutela das massas por um “lider”.
Atualmente, as novas tecnologias e a mídia interativa são apropriadas para desenvolver as potencialidades das massas. Esse ativismo se manifesta, muitas das vezes, como intervenções sem-rosto, como no Movimento Zapatista, no México, nos anos 1990.
“Não há, para um corpo, a menor possibilidade de ser só.
Do ponto de vista do corpo, pelo contrário, só há relação e processo.
O corpo é trabalho vivo e, portanto, expressão e cooperação, ele é construção material do mundo e da história. E multidão é o nome de uma multidão de corpos. Multidão é o conceito de uma potência.
A potência não quer simplesmente se expandir,
ela quer, sobretudo, conquistar um corpo: a carne da multidão quer se transformar no corpo da Inteligência Coletiva.” (Antonio Negri)
(Foto acima: Promesseiros em sacrifício e fé na procissão do Círio 2022, por Brenda Rachit)