
Volto com Ruy Espinheira Filho, o poeta baiano (quase um pleonasmo) que traz toda a complexidade da vida num lirismo nunca abandonado.
À sua memória, aflora o eterno fluir, com nossa pegada – visível, indelével ou fugaz, efêmera – no tempo.
Talvez por isso tenha recebido a alcunha de “poeta da memória”.
“Com que contundência estende o tempo o arco do seu incansável curso, convertendo todo o ir em prenúncio do perder-se, e todo o ido em anúncio do perdido?” (Sérgio Martagão Gesteira)
Numa entrevista, em 2008, foi-lhe perguntado se ainda haveria espaço para a poesia. Sua resposta:
“A poesia continua. Agora, como em toda época tem gente que não tem necessidade, ou melhor dizendo, não tem… não merece… tem gente que se consola com coisas inferiores e para elas são suficientes. E tem gente que não. Tem gente que tem uma necessidade lírica maior. (…) a poesia continua sendo necessária para aqueles que chegam até ela, que precisam dela. Eu acho que todos nós precisamos.”
TEMPO PERDIDO
No tempo perdido
deslizo à sombra
da árvore, sobre a
música do rio.
No tempo perdido
tudo é cintilância:
no luar, nos copos,
nos teus lábios úmidos.
No tempo perdido
cantam as alviaves
e me amas na areia
de uma praia anônima.
Ó tempo perdido,
como em ti sou rico,
maduro de viagens
e multilustrado!
Só teu universo
feito do não feito
nos dá o melhor
que há no factível.
Tomando o teu barro
nossos dedos moldam
como angelizados
um mundo ideal.
(Na tua verdade
uma outra história:
nós temos as mãos
repletas mas puras.)
Assim, pairo à sombra
da árvore, sobre a
música do rio,
computando nuvens;
conversando flores,
seixos, reflexos;
logo esporeando
um galope mágico.
No tempo perdido
recupero, enfim,
tudo o que perdi
no meu tempo ganho.”
OS BENS MAIORES
“O que ficou
além do enlace
é o que mais foi
preso pelo gesto.
O que não foi
tocado é o que
deixou sua marca
mais nítida na mão.
A gaiola vazia
é onde habita
o que há de mais belo
em gorjeio e pássaro.”
REVELAÇÃO
“Só o passado que
aguarda no futuro
revelará a limpidez
maior desta tarde.
Ai que somos felizes
agora
mas não tanto
como amanhã, no passado.”
O AVÔ
“O avô descansa
de quase um século.
O rosto é sereno
(não sei como pode
mostrar essa calma
após tanto tempo)
e as mãos despediram
todos os gestos.
O avô entre rosas
com seu terno escuro.
Pela primeira vez
indiferente.
Pela primeira vez
desatencioso
com mulher, filhos, netos,
conhecidos, o mundo.
Nem que implorássemos
nos recontaria
as tantas lembranças
entre farrapos de ópera.
Descansa tão fundo e
alto que é impossível
despertá-lo, saber
mesmo onde repousa.
No entanto está em nós
e nos impõe seus traços,
cor de olhos, jeito
de andar, sorrir, falar.
E o mais difícil de
cumprir:
a insuavizável
dignidade.
Avô, já nos retiramos.
Em silêncio vamos descendo
a ladeira. Pó do teu pó,
flutuaremos até
que o vento contenha o sopro.
E então te herdaremos
também essa paz final.
Absoluta. Tão perfeita
que nem a saberemos.”