“Como guardará/ Esta noite e outras e manhãs e tardes e nossas vozes que aos poucos cessarão” (Ruy Espinheira)

(Ruy Espinheira Filho, 79 anos)

Ruy Alberto de Assis Espinheira Filho nasceu em 1942, em Salvador. É jornalista, poeta, romancista, contista, ensaísta e cronista. É membro da Academia de Letras da Bahia.

Ele é um dos mais importantes poetas líricos brasileiros da modernidade, na opinião de Miguel Sanches Neto.

NESTA VARANDA (Ruy Espinheira Filho)

Logo mais não estaremos
Aqui nesta varanda, em torno desta mesa, confortáveis
nestas cadeiras de vime.

Erguemos nossos copos e bebemos.
Queima suave o conhaque (mas não tão suave como o que meu pai bebeu nos áureos tempos)
e o vento sopra por entre os losangos de madeira nova.

Toda a casa é algo de novo sob a lua.

No entanto, a morte já a tocou e suas paredes já escutaram vagidos,
como escutam agora as nossas palavras, o tilintar dos copos, a música que sobe da vitrola e fala de uma paixão incontida.

Calmos, bebemos. Cálido, o sangue
Circula em nossos corpos confortados,
Como noutros corpos antes,
Muito antes desta casa, de nós, seres remotos que ninguém adivinharia,
que ninguém projetou conscientemente neste espaço de Cronos que habitamos.

Mais que a casa ouvimos longe, como ouvimos a voz do cão Farouk, da cadela Joia; assim ela guarda o ladrar do cão Mourek e ouve conosco, neste instante, o cão Neruda.

Como guardará
Esta noite e outras e manhãs e tardes e nossas vozes que
aos poucos cessarão; e mais profundamente o silêncio do último a restar nesta varanda, nestas cadeiras de alto espaldar, diante desta mesa até que ela própria se encante
na memória do Universo.

Que nada lembra,
Todo imerso em se morrer eternamente.

DESCOBERTA

Só depois percebemos

o mais azul do azul,

olhando, ao fim da tarde,

as cinzas do céu extinto.

Só depois é que amamos

a quem tanto amávamos;

e o braço se estende, e a mão

aperta dedos de ar.

Só depois aprendemos

a trilhar o labirinto;

mas como acordar os passos

nos pés há muito dormidos?

Só depois é que sabemos

lidar com o que lidávamos.

E meditando sobre esta

inútil descoberta

enquanto, lentamente,

da cumeeira carcomida

desce uma poeira fina

e nos sufoca.

SONETO DAS MESAS

Convido os irmãos mortos para a mesa.
E mais o pai. E a mãe. E amigos tantos.
Não para reviver coisas de prantos,
pois horas dolorosas nesta mesa

não podem ter lugar. Tem a certeza
do amor com que bordamos nossos mantos
de dias já cumpridos e outros tantos
que são dos reunidos nesta mesa.

Os que se foram, eis que não se foram
de vez. E sempre vêm, quando os convido
ou não convido – jovens, sem tristeza.

Pai, mãe, irmãos, grandes amigos… Douram-me
a alma – enquanto aguardo, comovido,
minha vez de sentar-me à sua mesa.

Breve canção da caminhada

Vamos todos caminhando,
entre o amor e a morte,
por sobre o fio da navalha,
sem sul, leste, oeste ou norte.

E vamos, da luz da infância
até a alma anoitecida,
buscando um sentido no
nenhum sentido da vida.

Que mais fazer? Ah, brindar,
entre o que tarda e o de súbito,
às vitórias sobre a morte,
até o último decúbito

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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