
Leonardo Fróes costuma brincar com a vida levada a sério. Para ele, o dramático está perto do patético: “Só as aves entendem/ o que estou olhando ao longe/ sem pensar mas sentindo/ minha insignificância perfeita.”
Sua poesia, diz Fabrício Carpinejar, “celebra até a queda; não reclama da fila, encontra algo da fila para pensar”.
OLHAR DE VACA (Leonardo Fróes)
O império das formigas. A vaca
olha de longe o efêmero passante.
Os passarinhos atravessam
a estrada estreita, quieta e sinuosa
que segue o rio pelo vale.
O silêncio aglutina as criaturas
e os menores ruídos.
Vê-se a proliferação das espécies
nos menores meandros.
Mundos inimagináveis se criam.
Mundos desaparecem
nas bocadas da vaca no capim generoso.
O OBSERVADOR OBSERVADO (Leonardo Fróes)
Quando eu me largo, porque achei
no animal que observo atentamente
um objeto mais interessante de estudo
do que eu e minhas mazelas ou
imoderadas alegrias;
e largando de lado, no processo,
todo e qualquer vestígio de quem sou,
lembranças, compromissos ou datas
ou dores que ainda ficam doendo;
quando, hirto, parado, concentrado,
para não assustá-lo, com o animal me confundo,
já sem saber a qual dos dois
pertence a consciência de mim –
– qualquer coisa maior se estabelece
nesta ausência de distinção entre nós:
a glória, a beleza, o alívio,
coesão impessoal da matéria, a eternidade.
CHINÊS COM SONO (Leonardo Fróes)
Enquanto os bois e os pássaros retardatários
procuram seu lugar de dormir
e um lavrador quase omisso na paisagem
procura a rês desgarrada,
nessa hora crepuscular avançada
que injeta um misto de langor sensual e misticismo e cansaço,
captados porém por um pintor hipotético, antigo, que,
apertando bem os olhos, como um chinês com sono,
vê que a noite chegando sobre os morros
são apenas rajadas, pinceladas de luz.
SOBRE UM TEMA DE CONFÚCIO (Leonardo Fróes)
Que fique pelo menos um homem
sozinho num bar deserto pensando
em nada de especial e curtindo
pessoas atarefadas que passam.
Que a ele pelo menos aquilo
tudo – a pressa das tarefas e os carros –
pareça uma paisagem vazia
e até certo ponto sem cabimento.
Que este homem sentado, soterrado
talvez em decepções amargas, se oriente
para ouvir a canção além dos passos
e além de sua própria pessoa
que assim no delírio urbano ressoa
sem função social senão deixar
que a boca filosofe assobiando
e o ouvido obediente perceba.
DERIVAÇÃO DE MA CHIH-YUAN (China, século XIII)
Uma parreira desabada
uma árvore podre
um pássaro preto
uma ponte
um rio
fazenda
estrada antiga
um vento
cavalo exausto.
O sol deita daquele lado.
O homem de coração partido chega ao fim do mundo.
DERIVAÇÃO DE WANG-WEI (China, 701-761)
Gosto de andar assim sozinho ao relento.
É muito bom ter consciência de si.
Quando o rio corta o meu caminho,
paro e contemplo calmamente a neblina que sobe.
De vez em quando encontro uma criatura da mata.
Rimos e conversamos um pouco,
nem dá vontade de voltar para casa.