
Muitos conhecem a Parábola dos Talentos, enunciada em Mateus 25 e, de forma assemelhada, na Parábola das Dez Minas, em Lucas 19.
Sua leitura rápida parece endossar as atuais práticas capitalistas, o sistema bancário, os juros, a infatigável busca dos lucros e a meritocracia. Darei minha opinião, ao final, mas gostaria de conhecer outras.
Parábola dos talentos
“Pois será como um homem que, viajando para o estrangeiro, chamou seus servos e entregou-lhe seus bens.
A um deu cinco talentos, a outro dois, a outro um. A cada um de acordo com a sua capacidade. E partiu.
Imediatamente, o que recebera cinco talentos saiu a trabalhar com eles e ganhou outros cinco. Da mesma maneira, o que recebera dois ganhou outros dois.
Mas aquele que recebera um só, tomou-o e foi abrir uma cova no chão. E enterrou o dinheiro do seu senhor.
Depois de muito tempo, o senhor daqueles servos voltou e pôs-se a ajustar contas com eles.
Chegando aquele que recebera cinco talentos, entregou-lhe outros cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me confiaste cinco talentos. Aqui estão outros cinco que ganhei’.
Disse-lhe o senhor: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te com o teu senhor!’
Chegando também o dos dois talentos, disse: ‘Senhor, tu me confiaste dois talentos. Aqui estão outros dois talentos que ganhei’. Disse-lhe o senhor: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te com o teu senhor!’
Por fim, chegando o que recebera um talento, disse: ‘Senhor, eu sabia que és homem severo, que colhes onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste. Assim, amedrontado, fui enterrar o teu talento no chão. Aqui tens o que é teu’.
A isso respondeu-lhe o senhor: ‘Servo mau e preguiçoso, sabias que colho onde não semeei e que ajunto onde não espalhei? Pois então devias ter depositado o meu dinheiro com os banqueiros e, ao voltar, receberia com juros o que é meu. Tirai-lhe o talento que tem e dai-o àquele que tem dez, porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado. Quanto ao servo inútil, lançai-o fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de dentes!'”
O zeloso e temeroso foi punido. Os audaciosos, premiados. Qual é a moral da história?
Vamos, juntos, entender essa parábola?
Parábola, não esqueçamos, não pode ser lida literalmente. É uma alegoria que se utiliza do linguajar coloquial e dos costumes da época para, por analogia ou comparação, dar um recado.
Talento, também, não significa, nesse texto, aptidão incomum; simboliza um valor monetário da época.
A interpretação dessa parábola – assim como de vários textos bíblicos – pode ser dirigida a vários propósitos.
O padre (e ex-pastor) Robert Sirico, do Instituto Acton, que já foi militante de esquerda e atualmente considera-se um libertário neoliberal, para quem “a liberdade econômica é essencial para uma sociedade moral e ajuda aos pobre mais eficazes”, faz uma leitura ideológica:
“Podemos inferir dessa parábola que a igualdade de renda ou a realocação de recursos não é uma questão moral fundamental. Os talentos e matérias-primas que cada um de nós tem não são inerentemente injustos; sempre existirão desigualdades desenfreadas entre as pessoas. Um sistema moral é aquele que reconhece tal fato e permite que cada pessoa utilize seus talentos em sua plenitude.”
Um leitor com preocupação teológica dirá que seu significado é enfatizar o princípio de que cada um recebe dons e oportunidades. O servo fiel é aquele que, independentemente da quantidade de talentos recebida, age com responsabilidade e diligência: o servo fiel valoriza os bens do seu Senhor.
Huberto Rohden, numa visão mais espiritualista, defende que “não possuímos realmente o que apenas herdamos ou recebemos de outrem; só possuímos realmente aquilo que adquirimos ou conquistamos com o poder criativo de nosso livre-arbítrio. (…) O terceiro servo perdeu a sua potencialidade criativa, porque não a atualizou em Realidade criadora. (…) Se o homem, durante o ciclo total da sua existência, não se realizar, ele se des-realiza, se não se integrar no Infinito, ele se ‘desintegra‘, perde sua individualidade”.
Entendo que temos dotações específicas de qualidades que podemos (devemos?) aproveitar para o nosso pleno desenvolvimento como pessoa. Nossa trajetória é um exercício diário de possibilidades de realizações.
O modelo citado na parábola – qualidades de empreendedorismo e financeiras – é apenas um exemplo. Um artista tem aptidões próprias e válidas; o “sucesso” econômico é uma mistificação que se pretende mitificação.
Que cada um se realize plenamente, desafiadoramente, naquilo que o torna quem é. Porém, o fim não deve anular a fruição do processo – a vida se desenrola, não se ultima.
Lembrando Aristóteles: “A grandeza não consiste em receber honras, mas em merecê-las”.
Fiquemos atentos com a tirania do princípio do mérito, lembra Michael Sandel:
“Vivemos em uma constante competição que separa o mundo entre ‘ganhadores’ e ‘perdedores’. “
O “sucesso” deve ser compreendido em prol da coletividade (ao invés do enfoque individualista), numa ética diferente e dignificadora, guiada pela humildade e pela compreensão do papel do acaso na vida humana e pela criação real de oportunidades.
Prezado Dorgival, aprendo muito com cada post seu. Além disso, eles são um balsamo, nesse momento de trevas, que infelizmente estamos passando.
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