
Gonçalo M. Tavares é um fenômeno literário. Seu primeiro trabalho foi publicado em 2011; depois, desembestou: como dramaturgo, poeta, romancista, ensaísta contei mais de 40 obras! Coleciona prêmios: 11.
Suas poesias tratam da vida, com agudo poder de observação e síntese.
AS DUAS VELHAS
São duas velhas, lado a lado, no café.
Não se olham: certezas em cada uma.
A da direita: dedos no ar ao ritmo das queixas.
O ar, dócil, percebe estas velhas: em poucos anos
serão suas companheiras.
Chama-lhes irmãs pequenas, ingênuas.
As velhas prosseguem vivas e a falar de dinheiro.
Deus é interrompido pelo preço do arroz, nas conversas.
Descrevem a doença, a fraqueza e, logo a seguir, acusam
de impiedade quem ainda não é tão doente quanto elas.
Alguém as enganou.
Provavelmente sacrificaram a vida pelos filhos;
esperaram pelo futuro.
Agora ele chegou e a única novidade que traz é o cansaço;
a dificuldade de movimentos,
a maneira como facilmente se esquecem do que ainda ontem consideravam imprescindível.
Não vão morrer, hoje, já, porque não trouxeram o coração.
Voltarão, mais tarde, a casa e às orações,
depois de desejarem intimamente que os filhos se tornem ricos e que a amiga morra primeiro.
O VIÚVO
Tem o tempo todo.
Perdeu-o, nos dias de desejo, para o trabalho e para outros assuntos,
e agora que o tem por inteiro caminha muito lento
e quando olha em redor procura olhos
que se lembrem dos seus antigos momentos de pressa.
Tem tempo. Caminha lentamente.
Antes a ambição fazia-o levantar-se,
agora, quase se podia jurar, ser o cachimbo que o mantém em pé, agarrado ao ar como a nada.
Passa perto e olha para mim; acena a cabeça.
Servem-lhe os dias, pelo menos, para ser educado.
É velho. Atravessa, muito lento, o tempo e a terra,
e vai dizendo adeus às pessoas,
como se exercesse o privilégio de se despedir dos amigos no seu próprio funeral.
A RAPARIGA QUE TEM MEDO
Nos dedos mistura o pão e o ovo
com as carícias à cara do namorado.
Lição: das unhas sai afeto e sujidade. Nada é só
uma coisa, há vários lados.
Os dois murmuram palavras
que saem do pouco espaço deixado pela comida.
Como um entende o outro, ninguém sabe.
Os corpos entre si encontram equilíbrios por vezes estranhos.
Ele tem óculos redondos e cara e olhos
de quem não está em mais lado nenhum.
Ela não: vê-se que conhece a distância
que a alma deve guardar ao outro
para sobreviver em caso de tragédia.
Terá já conhecido o modo como toda a eternidade terrestre termina.
Nas carícias os dedos não se encontram cheios.
O medo de ser de novo abandonada assustou a carne
até aos pulsos;
se o machado vier certamente sairá sangue,
porém a alma jamais será caçada.
Nessa rapariga não são claros nem corajosos os dias.
Observador das idades. Genial. Incomodativo.
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