“Nunca é meio-dia na floresta”

(Gonçalo Manuel de Albuquerque Tavares, 52 anos)

Gonçalo M. Tavares é um fenômeno literário. Seu primeiro trabalho foi publicado em 2011; depois, desembestou: como dramaturgo, poeta, romancista, ensaísta contei mais de 40 obras! Coleciona prêmios: 11.

Suas poesias tratam da vida, com agudo poder de observação e síntese.

AS DUAS VELHAS

São duas velhas, lado a lado, no café.

Não se olham: certezas em cada uma.

A da direita: dedos no ar ao ritmo das queixas.

O ar, dócil, percebe estas velhas: em poucos anos

serão suas companheiras.

Chama-lhes irmãs pequenas, ingênuas.

As velhas prosseguem vivas e a falar de dinheiro.

Deus é interrompido pelo preço do arroz, nas conversas.

Descrevem a doença, a fraqueza e, logo a seguir, acusam

de impiedade quem ainda não é tão doente quanto elas.

Alguém as enganou.

Provavelmente sacrificaram a vida pelos filhos;

esperaram pelo futuro.

Agora ele chegou e a única novidade que traz é o cansaço;

a dificuldade de movimentos,

a maneira como facilmente se esquecem do que ainda ontem consideravam imprescindível.

Não vão morrer, hoje, já, porque não trouxeram o coração.

Voltarão, mais tarde, a casa e às orações,

depois de desejarem intimamente que os filhos se tornem ricos e que a amiga morra primeiro.

O VIÚVO

Tem o tempo todo.

Perdeu-o, nos dias de desejo, para o trabalho e para outros assuntos,

e agora que o tem por inteiro caminha muito lento

e quando olha em redor procura olhos

que se lembrem dos seus antigos momentos de pressa.

Tem tempo. Caminha lentamente.

Antes a ambição fazia-o levantar-se,

agora, quase se podia jurar, ser o cachimbo que o mantém em pé, agarrado ao ar como a nada.

Passa perto e olha para mim; acena a cabeça.

Servem-lhe os dias, pelo menos, para ser educado.

É velho. Atravessa, muito lento, o tempo e a terra,

e vai dizendo adeus às pessoas,

como se exercesse o privilégio de se despedir dos amigos no seu próprio funeral.

A RAPARIGA QUE TEM MEDO

Nos dedos mistura o pão e o ovo

com as carícias à cara do namorado.

Lição: das unhas sai afeto e sujidade. Nada é só

uma coisa, há vários lados.

Os dois murmuram palavras

que saem do pouco espaço deixado pela comida.

Como um entende o outro, ninguém sabe.

Os corpos entre si encontram equilíbrios por vezes estranhos.

Ele tem óculos redondos e cara e olhos

de quem não está em mais lado nenhum.

Ela não: vê-se que conhece a distância

que a alma deve guardar ao outro

para sobreviver em caso de tragédia.

Terá já conhecido o modo como toda a eternidade terrestre termina.

Nas carícias os dedos não se encontram cheios.

O medo de ser de novo abandonada assustou a carne

até aos pulsos;

se o machado vier certamente sairá sangue,

porém a alma jamais será caçada.

Nessa rapariga não são claros nem corajosos os dias.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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