
A vida é uma trilha de perdas. Algumas são comezinhas, como perder o horário, a derrota do time, queda dos cabelos, quebrar uma unha, derrota do político preferido, falência etc.
Outras são relevantes, marcantes: perder a confiança em alguém, ou a esperança no país, a saúde, a paz interior, um ente querido, o interesse pela vida …
Algumas perdas são uns achados, como quando ocorre um divórcio e abre-se a oportunidade de se encontrar alguém mais afinado, ou quando um atraso nos livra de um acidente. São perdas necessárias, talvez.
Nem todos sabemos perder, embora algumas perdas nos permitam crescer, principalmente aquelas decididas por nós, quando desistimos, num reflexo intuitivo ou racional. A renúncia pode pavimentar nossas veredas.
Às vezes, os investimentos emocionais que fazemos nos tornam vulneráveis às perdas que, inconscientemente, passam a pautar a nossa vida, para o melhor ou pior.
Freud “descobriu” isso; que nosso passado, com seus desejos, terrores e paixões, habita o nosso presente e pode nos modelar.
Tove Ditlevsen era uma autora dinamarquesa. Publicou cerca de 30 livros: poemas, romances, memórias, ensaios e contos. Era conhecida por seu estilo direto e contas honestas de sua vida privada. Ela se casou e se divorciou quatro vezes.
Seu mundo era pobre em dinheiro, emocionalmente mesquinho e misógino. A atmosfera que ela descreve em suas memórias é úmida, escura e sem flores.
A Dinamarca nem sempre foi sinônimo de bem-estar. Atualmente é um dos países com menor desigualdade social no mundo.
Você não pode se decepcionar sem antes ter esperado.
Quando menina, Ditlevsen ansiava por um pouco de atenção da sua mãe, que a ignorava. Ela vivia descontente com o casamento, mas o que poderia fazer? Era uma mulher, pobre, com vida limitada.
Seu pai era um frustrado: gostaria de ter estudado mas o ensino (médio ou superior) não era possível sem dinheiro. Quando ele perdeu o emprego em 1924, durante uma crise econômica, a família foi forçada a recorrer ao auxílio aos pobres por um período.
“Meninas não podem ser poetas!”, dissera o pai, certa vez.
É somente quando a criança cresce que os pais se tornam comuns, ou seja, humanos.
A realidade (ou a ideia que se tem dela), então, passa a depender tanto da dor (passado e presente) quanto da esperança (futuro).
Ela perdeu os pais quando era muito jovem.
No que toda essa carga de “realidade” transformou sua vida numa longa luta contra as drogas e a depressão?
Aos 58 anos, Ditlevsen cometeu suicídio tomando uma overdose de pílulas para dormir.
To My Dead Child (um de seus primeiros poemas, quando adolescente)
“Eu nunca ouvi sua vozinha.
Seus lábios pálidos nunca sorriram para mim.
E o chute de seus pezinhos
é algo que eu nunca verei. . . .
Veja como beijo sua mão gelada,
feliz por estar com você ainda por algum tempo,
silenciosamente eu te beijo, sem chorar,
embora as lágrimas estejam queimando em minha garganta.”
“Pela manhã havia esperança.
Era como um lampejo fugaz de luz no cabelo preto liso de minha mãe que eu nunca ousei tocar; estava na minha língua com o açúcar e o mingau de aveia morno que eu comia lentamente enquanto olhava para as mãos esguias e dobradas de minha mãe que jaziam imóveis sobre o jornal . . .
Atrás dela, no papel de parede florido, os farrapos colados por meu pai com fita adesiva marrom, pendia a foto de uma mulher olhando pela janela. No chão atrás dela havia um berço com uma criancinha. Abaixo da foto estava escrito: ‘Mulher esperando seu marido voltar do mar’.
Uma vez minha mãe me avistou de repente e seguiu meu olhar até a foto que eu achava tão terna e triste. Mas minha mãe começou a rir e isso soou como dezenas de sacos de papel cheios de ar explodindo de uma só vez … Se eu não tivesse olhado para a foto, ela não teria me notado. Então ela teria ficado sentada lá com as mãos calmamente cruzadas e olhos duros e lindos fixos na terra de ninguém entre nós.
E meu coração poderia ainda ter sussurrado ‘Mãe’ por muito tempo e saber que de uma forma misteriosa ela o ouvia . . .
Então algo como o amor teria preenchido o mundo inteiro.”
“Quando você teve
um dia
uma grande alegria
ela dura para sempre
tremulando levemente
na borda de todos
os inseguros dias de nossa vida
alivia os temores herdados
faz o sono mais profundo.
O quarto era
uma ilha de luz
meu pai e minha mãe
estavam pintados
na parede da manhã.
Estendiam um brilhante
livro ilustrado para mim
sorriam ao ver
minha imensa alegria.
Vi que eram jovens
e felizes
por estarem juntos
vi pela primeira
vi pela última vez.
O mundo tornou-se eternamente
dividido em um antes
e um depois.
Eu tinha cinco anos
desde então tudo
mudou.”
Talvez essa grande alegria a tenha ajudado, mas não a salvou.