
Malba Tahan é o pseudônimo do escritor carioca Júlio César de Mello e Souza, também professor, matemático e engenheiro.
Entre os seus 120 livros está o célebre “O homem que calculava”.
O NATAL DO BOM CALIFA
“A certeza, na vida – dizia um velho beduíno, meio filósofo, que conheci em Damasco -, é mais rara que a flor do anem no deserto Rub-al-Khali (na Arábia).
Sim, a certeza para as múltiplas situações e problemas da vida é realmente das coisas raras.
Será, certamente, mais preciosa do que a flor rubra do anem na aridez escaldante das areias sem fim.
Mas, por Alá, que importa? Há ocasiões em que o nosso espírito se sente sob o escudo inabalável da certeza.
Eis um caso bastante expressivo que vem corroborar o que acabo de afirmar.
– Tenho certeza, meu amigo, certeza absoluta de que você já ouviu muitas vezes falar do glorioso Al-Mutasim, califa de Bagdá, Xeque do Islã. Já ouviu, não é verdade? Vamos. Faça um pequeno esforço de memória. Não se lembra? Al-Mutasim, na primeira metade do século IX, ocupou o trono de Bagdá e foi, no seu tempo, um dos monarcas mais ricos e prestigiosos.
Tomo Djebril (Arcanjo Gabriel), o incomparável, como testemunha fiel do que vou contar.
Certa manhã, o poderoso Al-Mutasim (Que Alá o tenha entre os eleitos!), mandou que viesse à sua presença o vizir Yasbek Naífe.
Direi que esse vizir ou ministro do califa era homem de meia-idade, sensato e cauteloso. Por ser culto e viajado, desempenhava, na corte, as árduas e honrosas funções de conselheiro do rei. E mais ainda. Sempre que se fazia necessário, servia, também, com inexcedível eficiência, de intérprete durante as audiências com embaixadores da Pérsia, da Índia ou da China.
Atendendo ao chamado do califa, chegou o prestimoso Yasbek Naífe ao divã real. E houve, então, entre o emir dos árabes e seu digno auxiliar um diálogo que vou tentar reproduzir.
Califa – Sinto-me, meu caro vizir, intrigado com algo que ocorre neste palácio, e desejo amplo esclarecimento e minuciosas informações a respeito.
Vizir – De que se trata, ó príncipe dos crentes?
Califa – Eis o que observei: ao romper da manhã, pouco antes da primeira prece, ouvi cânticos que partiam do fundo do jardim. Mais tarde, quando subi ao terraço, outra vez o murmúrio de um hino feriu-me os ouvidos. Tenho a impressão de existe por toda parte, na luz do Sol, nas nuvens que se amontoam na amplidão azul, no rebrilhar dos repuxos e até nas fisionomias dos servos e escravos, uma espécie de alegria, um ar de festa e de intenso júbilo. Estarão os bagdalis preparando alguma surpresa para os caravaneiros da Síria? Pretenderão comemorar algum feito glorioso de nossos antepassados?
Vizir – Cumpre-me dizer-vos, ó rei do tempo, que os bagdalis não aguardam hoje as ricas e aparatosas caravanas de Damasco, nem pensam em festejar as estupendas vitórias dos exércitos do Profeta sobre as hordas dos hereges e fanáticos. A música que chamou a vossa prestimosa atenção para a alegria intensa que ela estende por toda a cidade não parte dos muçulmanos, mas dos cristãos.
Califa – Dos cristãos? Que pretendem esses infiéis com todos esses cânticos e hinos festivos?
Vizir (com um sorriso tranquilo) – Nada de mau, ó príncipe do Islã, nada de mau! Os cristãos, por todos os recantos do mundo, festejam, na data de hoje, o nascimento de Issã, filho de Maria, quem eles veneram sob o nome de Jesus Cristo, o Salvador!
Califa (com certo espanto) – Mas Issã, filho de Maria, é citado, com alta e elogiosa distinção, no Livro Sagrado (Alcorão)!
Vizir – Sim, ó rei magnânimo, o incomparável Issã, filho de Maria, por suas incontáveis virtudes e divinos atributos, é citado dezenove vezes no Alcorão, o Incriado. Uma das cinco preces que nós, muçulmanos, proferimos todos os dias, é feita em homenagem a Issã, filho de Maria, o inspirado de Alá!
Califa (arrebatado) – Sei que és sábio, ó vizir! Sei que já leste todos os livros que ensinam os ritos, os hadiths (conversações) e as tradições. Conta-me, ó insigne Yasbek, conta-me um episódio da vida desse admirável Issã, filho de Maria, cujo nome é consagrado pelas nossas preces e pela nossa profunda veneração!
Vizir – Escuto-vos e obedeço-vos. Vou narrar-vos um dos muitos episódios que aureolam a vida exemplar de Issã, filho de Maria.
Califa – Fala. As tuas palavras serão com brincos de ouro para os meus ouvidos!
Vizir – Achava-se, certa vez, Issã, filho de Maria, em Jerusalém e ensinava aos homens o caminho da justiça e da bondade. Com suas palavras cheias de divina sabedoria conquistava a simpatia dos humildes e ameigava o coração dos mais rebeldes.
Mas os pérfidos fariseus e os ricos sacerdotes decidiram prendê-lo. Como atirar a culpa sobre um justo? Como acusar um inocente?
Queriam um pretexto que legitimasse, aos olhos da multidão, a captura violenta, a iníqua prisão do Mestre. E esse pretexto surgiu. Os pérfidos arquitetaram um plano.
Califa (impressionado) – Que Alá castigue os pérfidos judeus!
Vizir – Irrompeu, num pátio em que se achavam as mulheres, violento tumulto. Uma das infelizes fora surpreendida em adultério.
Escribas e fariseus arrastaram a desventurada pecadora para diante de Jesus. Queriam, com o consentimento do Mestre, condená-la à morte!
Califa – Condená-la?
Vizir – Sim, ó rei dos árabes! Prescreve a lei mosaica que a mulher sob acusação de adultério seja lapidada, morta a pedradas, em plena rua, pelo povo.
Então os judeus, enfurecidos, levaram a mulher para diante de Jesus, filho de Maria.
Nathan Hazer, fariseu rico, que parecia o mais prestigioso do grupo, sustentando nas mãos duas ou três pedras, interpelou o Mestre: ‘Determina a lei de Moisés que esta mulher seja lapidada. Que pensas disso, ó rabi?’
Issã ergueu os olhos, olhos cheios de infinita candura, e olhou para a acusada.
A mísera rapariga, deitada por terra, ocultava o rosto com as mãos e os cabelos. As suas vestes estavam rotas, os seus pés, feridos.
Na imensa vergonha, não ousava fitar aquele que os impiedosos acusadores haviam escolhido para supremo juiz.
Isaac Hana, outro fariseu, insistiu com arrogância: ‘Sabemos que és implacável na luta contra o pecado. Que decides em relação a esta mulher, ó rabi?’
Jesus não respondeu. Abaixou-se e, com a ponta do dedo, pôs-se a escrever no chão.
Califa – Ele escrevia sempre?
Vizir – Não. Nunca. Só escreveu essa vez e nunca mais. Quando os judeus viram Jesus, em silêncio, a rabiscar na areia, encheram-se de alegria.
Tinham a impressão de que o haviam enleado nas teias de irremovível dificuldade. Realmente. Perdoar a adúltera seria transgredir a lei civil; condená-la seria subverter e demolir a lei de Deus.
Outro judeu, um certo Jannai Meir, que pertencia à família dos sacerdotes, proferiu em tom de desafio: ‘Qual é a tua sentença, ó rabi?’
Respondeu Jesus: ‘Que se cumpra a lei!’
Califa – Condenou?
Vizir – Não. Não condenou. Disse apenas: ‘Que se cumpra a lei’. Mas acrescentou, com impressionante energia, dirigindo-se aos pérfidos judeus: ‘Aquele de vós que se julgar isento de culpa, que atire a primeira pedra!’
Nathan Hazer, que se achava à frente, chefiando o grupo, procurou ler o que Issã escrevera.
A seus olhos surgiu apenas uma palavra: ‘Fratricida’. O rosto do miserável acusador cobriu-se de indizível palidez. Ali estava, bem clara, na areia, a acusação que faria dele, judeu orgulhoso, um ser abominável.
Era, na verdade, um execrável fratricida. Dois anos antes, para apoderar-se de uma herança, assassinara seu irmão mais moço. O crime ficara em segredo, e o criminoso, impune. As pedras que Nathan Hazer trazia nas mãos caíram por terra, e o rancoroso fariseu retirou-se sob o peso da acusação que o aniquilara.
Isaac Hana, ao ver seu amigo Nathan afastar-se, ficou apreensivo. Procurou ler, também, o que Issã havia escrito. Aos olhos de Isaac surgiu, em letras bem nítidas, esta gravíssima denúncia: ‘Ladrão sacrílego’.
E era a expressão da verdade. Recordou-se Isaac de que roubara, alguns meses antes, as ricas alfaias e vasos de ouro da sinagoga. Jamais poderia ele, ladrão sacrílego diante do rabi, considerar-se isento de culpa, livre de pecado. E o miserável acusador, esmagado pela revelação de sua alma torpe, afastou-se em silêncio.
O arrogante Jannai Meir, também como os outros, lançou os olhos sobre os caracteres que Issã traçara no chão e leu, cheio de ódio: ‘Envenenador!’
Ali estava estampado, em letras bem claras, o crime de sua vida. Jannai envenenara um ancião que o havia acusado perante o sinédrio. E o sórdido Jannai retirou-se, disfarçadamente, fugindo para o meio das tendas.
Califa – É espantoso o que acabas de contar, ó vizir! E Issã, filho de Maria, havia escrito tudo isso? Fratricida, ladrão sacrílego, envenenador?
Vizir – Tenho dúvida em responder. Não sei se deverei responder ‘sim’ ou ‘não’. Issã, filho de Maria, havia escrito uma palavra. Uma palavra e nada mais. Mas, pela vontade de Deus (Exaltado seja o Onipotente!), essa palavra era milagrosa.
Para um, as letras formavam ‘Fratricida’; aos olhos de outro, surgia: ‘Ladrão sacrílego’; o terceiro só poderia ler, como realmente leu: ‘Envenenador!’
E assim cada acusador lia, na areia, na mesma areia em que caíram as lágrimas da pecadora, o crime que lhe enodoava a consciência.
Califa – Que fizeram, então, os pérfidos judeus que acusavam a adúltera?
Vizir – Retiraram-se todos. Jesus levantou-se e, não vendo senão a infeliz pecadora, que continuava a chorar, perguntou-lhe: ‘Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou?’
Ela respondeu, num fio de voz: ‘Ninguém, Senhor!’
Disse então Jesus, com longanimidade: ‘Nem eu também te condeno. Vai-te, minha filha, vai-te e não tornes a pecar!’
E aqui sua alma deixava transparecer toda a infinita caridade de que era formada.
Califa – É admirável!
Vizir – Com essa sábia e divina sentença, ó califa, ensinou Jesus, aos homens, que o amor, o amor verdadeiro, se resume no perdão. Para amar, é preciso saber perdoar. Muito ama aquele que muito perdoa.
Foi esse, meu bom amigo, segundo a lenda, o Natal do bom califa.
Posso afirmar isso com absoluta certeza, embora saiba que a certeza, na vida, é mais rara do que a flor do anem do deserto de Rub-al-Khali.”