Mulheres, negras, pobres: loucas

(Stella do Patrocínio, 1941-1992)

Ninguém fala delas. Se não existiram enquanto viviam, como fazê-las presentes?

Maio é o mês da Luta Antimanicomial; hoje, 6 de maio, é aniversário de Freud; dia 13 comemora-se a Abolição da Escravidão: tudo se relaciona com a sofrida experiência terrena de Stella do Patrocínio e de Aurora Cursino dos Santos.

Hospício foi o destino “natural” de Stella e de Aurora: esta, ficou internada no Juquery, em São Paulo, entre 1944 e 1959; Stella, na Colônia Juliano Moreira, no Rio, onde ficou por trinta anos.

Aurora era prostituta; fugira de casa por não aceitar um casamento imposto, aos 16 anos. À época, negra e caipira, restavam poucas ocupações para as rebeldes.

Stella, também negra e pobre, foi levada à força pela polícia. Política de “higiene social”.

Na época em que Aurora nasceu, Freud articulava a psicanálise e se ocupava do estudo da “histeria”, causa das volumosas internações de mulheres em clínicas e hospícios.

Ainda hoje, os hospícios continuam para o descarte dos indesejáveis; no século passado, principalmente, serviam para o encarceramento perpétuo dos “desajustados”: pobres, homossexuais, prostitutas, opositores políticos, mulheres cujos maridos queriam abandoná-las etc.

NÃO DEU TEMPO

“não deu tempo
eu estava tomando claridade e luz
quando a luz apagou
a claridade apagou
tudo ficou nas trevas
na madrugada mundial
sem luz” (Stella do Patrocínio)

(Pintura de Aurora Cursino dos Santos, 1896-1959)

EU ERA GASES PURO

“eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo

eu era ar, espaço vazio, tempo

e gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó

eu não tinha formação

não tinha formatura

não tinha onde fazer cabeça

fazer braço, fazer corpo

fazer orelha, fazer nariz

fazer céu da boca, fazer falatório

fazer músculo, fazer dente

eu não tinha onde fazer nada dessas coisas

fazer cabeça, pensar em alguma coisa

ser útil, inteligente, ser raciocínio

não tinha onde tirar nada disso

eu era espaço vazio puro” (Stella do Patrocínio)

(Pintura de Aurora Cursino dos Santos)

EU NÃO QUERIA ME FORMAR

eu não queria me formar

não queria nascer

não queria formar forma humana

carne humana e matéria humana

não queria saber de viver

não queria saber da vida

eu não tive querer

nem vontade para essas coisas

e até hoje eu não tenho querer

nem vontade para essas coisas” (Stella do Patrocínio)

(Pintura de Aurora Cursino dos Santos)

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

2 comentários em “Mulheres, negras, pobres: loucas

  1. Hospício foi o destino “natural” de Stella e de Aurora: esta, ficou internada no Juquery, em São Paulo, entre 1944 e 1959; Stella, na Colônia Juliano Moreira, no Rio, onde ficou por trinta anos. Começando a discorrer sobre esse tema tão relevante, nós temos uma imensa dívida com grade parte da população menos favorecida. Em um passado não muito distante ( e alcancei esse passado) onde a psicologia, a psiquiatria estávamos se engatinhando e o desconhecimento, a ignorância, a falta de cientistas habilitados para tratar de assuntos da mente. Eram todos jogados no mesmo balaio como “loucura” . Somente quem já viu um manicômio onde os nossos semelhantes eram jogados pior que animais. Os gritos horríveis de dor e pedidos de socorros ouvíamos de longe. Eram-lhes aplicadas injeções chamadas popularmente como “sossega leão” e as chamadas “camisas de forças “para calar os gritos de dor dos oprimidos numa verdadeira covardia e falta de conhecimento de um tratamento adequado, digno e decente para abafar as dores da alma e da mente. Graças aos pioneiros e estudiosos hoje não podemos dizer que as coisas estão 100%, melhor , mas já se tem em nossos dias um tratamento medico-psicologico -psiquiatra mais humanizado. Porém , não se apaga de nossa história essa mancha negra de não muito distante. Evidente que ainda existe algumas supostas clínicas que impigem aos nossos semelhantes clandestinamente sofrimentos desnecessários. Nem gostaria de falar aqui nesse texto fatos desumanos que conheço por força de minha profissão atos dolorosos aos seres humanos que por vezes doentes da mente cometem delitos e vão parar nos desumanos manicômios judiciários. O assunto é vasto. Porém , essa dívida nós como sociedade temos com os doentes da mente. Infelizmente nosso País não tem investido na ciência nos últimos tempos. Fico por aqui como disse escreveria um tratado ou livro sobre esse assunto que me incomoda muitíssimo.

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