
Viver é, desde o nascimento, um processo adaptativo. Uns entendem e aceitam isso; a maioria, entretanto, não se apercebe que está por sua conta e reclama (do destino, dos outros … da própria vida).
O conformismo, a resignação, o vitimismo, a fuga, a autocomplacência e outros posicionamentos negativos diante do desafio da vida, simplesmente não ajudam. Mas, como disse, a maioria não vê a vida como um processo desafiador – sempre, até à beira da morte – e desiste, não busca alternativas, não se reforça; revolta-se ou começa a morrer.
A vida é um jogo, sim. Uns nascem com boas cartas, poucos; mesmo assim, pode perdê-las. O povo comum, entretanto, nasce desprovido de background familiar e social e, tem que provar que a sociomeritocracia existe. Não existe. O que existe é uma combinação de não aceitação das condições dadas, teimosia e sonho.
Sempre me intrigou a atitude perante a vida de Carolina Maria de Jesus.
Ela, favelada, negra, catadora de papel, mãe solteira – com três filhos para alimentar e educar -, que só pôde chegar até o segundo ano de uma escola primária, nunca se desesperou. Claro que teve seus momentos de revolta, principalmente com a apatia governamental.
“Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência.”
Sua maior companheira é a fome, que aparece com frequência irritante no seu livro.
“15 de julho de 1955: aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.”
Ela teve sorte – que existe, para os preparados: foi “descoberta” por um jornalista, Audálio Dantas.
Dantas a encontrou ao ser incumbido de fazer uma matéria sobre a favela do Canindé, em São Paulo, onde morava Carolina.
Lá, presenciando uma discussão, ouviu uma moradora gritar que se não parassem ela registraria o episódio nos seus diários. O faro jornalístico o levou a conhecer o “livro” de Carolina, a que protestava.
Sabia que a melhor reportagem é aquela feita por quem vive a realidade, e publicou trechos de seu diário.
“Ninguém pode escrever a vida de um homem, só ele mesmo” (Jean-Jacques Rousseau)
A favela do Canindé, à beira do rio Tietê, onde hoje há o estádio da Portuguesa, foi derrubada para dar espaço à Marginal Tietê. São Paulo sabe como tirar a pobreza da vista, afastando-a para lugares que os paulistanos não precisam conhecer. E, a favela do Canindé, onde viveu Carolina, na rua A, barraco nº 9, multiplicou-se em dezenas, centenas de outras.
“… Não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas têm marido. Mas são obrigadas a pedir esmolas. E elas, têm que mendigar e ainda apanhar. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas.”
Há algo que começa a incomodar os que não são incomodados: o racismo estrutural. Dizem que é ficção, que brasileiro é gente fina, não tem preconceitos! O Brasil nunca será viável enquanto não reconhecermos a discriminação nem tão sutil sobre os negros, pobres e periféricos.
“… tenho todos os privilégios de branca num país estruturalmente racista, é opressor.
É opressor mesmo não sendo opressor pessoalmente porque essa é uma das marcas do racismo estrutural. Os brancos já nascem com mais chances de sobreviver ao parto do que um bebê negro e este é só o início de uma longa trajetória em que as vantagens da desigualdade racial estão dadas.
Mesmo que individualmente não tenha causado o racismo estrutural e mesmo que coloque a luta contra o racismo estrutural no centro da sua vida, todo branco, e mesmo os mais pobres, usufruem em alguma medida dos privilégios de ser branco numa sociedade racialmente desigual como a brasileira.” (Eliane Brum)
Qual o papel da política com relação à pobreza? Aceitá-la, como natural, conforme pregam os neoliberais, ou gerar oportunidades? Um país com metade na busca da sobrevivência tem boas perspectivas ou é um barril de pólvora? A fome é revolucionária.