Gente simpática e pacífica – de bem!

(Judeus sendo transportados para campos de concentração- Foto: Yad Vashem Photo Archives)

É possível chegarmos ao conhecimento sobre as coisas que nos rodeiam?

Husserl, o fundador da Fenomenologia, perguntava-se sobre “as perplexidades em que se enreda a reflexão sobre a possibilidade de um conhecimento atinente às próprias coisas; como pode o conhecimento estar certo da sua consonância com as coisas que existem em si, de as ‘atingir’?”

Isso já é complexo tratando-se das “coisas”; imaginem quando o assunto é sentimentos!

Gosto de filosofia, por mais que a Modernidade e a Ciência a enterrem.

“(…) tenho a convicção de que filosofia é um acontecimento constante do ser humano, que o caracteriza como ser humano, e de que aí não existe nenhum progresso, mas apenas participação.” (Hans-Georg Gadamer)

A filosofia, a democracia, a ciência, a economia … são processos – caminhos abertos, com milhares de ramificações, complexos, contraditórios às vezes, avanços e recuos; felizmente nunca chegarão às “verdades” finais, dogmáticas, como a religião. Importa mais a busca do que o resultado.

A unidade resulta da multiplicidade, dizia Platão. Aceitar o diverso, entretanto, requer coragem.

Coragem (Andreía, em grego), como via Platão, que não se revela tanto na obviedade de uma ameaça a ser temida quanto no perigo oculto que o “encantadoramente agradável” representa – e isso, no campo da política, é o perigo da bajulação, que se deve temer mais que a ameaça aberta proveniente do antagonista.

Todo esse blá para falar da nossa tendência à inocência covarde.

Géraldine Schwarz, escritora franco-alemã, conta no seu livro “Os amnésicos: história de uma família europeia”, a história de seus antepassados, gente simpática e a princípio pacífica.

Eles viveram durante a ascensão, glória e queda do nazismo. Eram parte da vasta e silenciosa multidão dos Mitläufer (termo alemão para definir aqueles que, com “pequenas cegueiras e pequenas covardias”, se refugiavam na omissão), que viam com naturalidade a normalização da barbárie.

“A história não se repete, mas os mecanismos sociopsicológicos permanecem os mesmos que, em um contexto de crise, nos levam a nos tornarmos cúmplices irracionais de doutrinas criminosas.” (Géraldine Schwarz)

Seus ancestrais testemunharam, entre o indiferente e o impassível, as “procissões de centenas de judeus” deportados para os campos.

Eles, viam o Führer como o salvador da pátria – um mito!

“Os animais carnívoros matam por comida; nós matamos os nossos familiares, os nossos filhos, os nossos pais, os nossos cônjuges, os nossos irmãos e irmãs, os nossos primos e sogros.

Matamos estranhos. Matamos pessoas que são diferentes de nós em aparência, crenças, raça e estatuto social.

Matamo-nos no suicídio. Matamos por vantagem e por vingança, matamos por entretenimento: o Coliseu Romano, tiroteios de carro, touradas, caça e pesca, matança de animais na estrada num reflexo instantâneo por desporto.

Matamos amigos, rivais, colegas de trabalho, e colegas de turma.

As crianças matam crianças, na escola e no recreio.

Avós, pais, mães – todos matam e todos eles são alvos a matar.” (R. Douglas Fields, neurocientista)

É, somos vítimas de nós mesmos e dos que sabem nos manipular.

Kalaf Epalanga, angolano que conseguiu fugir da interminável guerra em seu país, fala o que sabemos e que fingimos ignorar:

“Enquanto permitirmos ficar reféns da vontade dos fabricantes de armas e de políticos que nos querem ver zangados e com medo dos nossos semelhantes, essa raiva e esse medo serão o fim da humanidade, pois bastará apenas uma pitada a mais da nossa velha e casmurra estupidez para acreditar que o uso de armas nucleares para defender qualquer ideologia ou doutrina religiosa é justificável.

Que o universo nos salve de nós próprios.”

Mário de Andrade, no seu poema “Noturno de Belo Horizonte”, resume uma intenção de humanidade:

” (…) Não prego a guerra nem a paz, eu peço amor!
Eu peço amor em todos os seus beijos,
Beijos de ódio, de cópula ou de fraternidade.

Não prego a paz universal e eterna, Deus me livre!
Eu sempre contei com a imbecilidade vaidosa dos homens
E não me agradam os idealistas.

E temo que uma paz obrigatória
Nos fizesse esquecer o amor
Porque mesmo falando de relações de povo e povo
O amor não é uma paz
E é por amor que Deus nos deu a vida…

O amor não é uma paz, bem mais bonito que ela,
Porque é um completamento!…
Nós somos na Terra o grande milagre do amor!
E embora tão diversa a nossa vida
Dançamos juntos no carnaval das gentes. (…)”

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

Um comentário em “Gente simpática e pacífica – de bem!

  1. Texto extremamente bem feito com diversas citações, abrangente e bem elaborado com extremo primor onde o autor abrange várias áreas de conhecimento. Começarei por aqui :: “É possível chegarmos ao conhecimento sobre as coisas que nos rodeiam? Sinceramente responderia essa pergunta como não. Teríamos que nos aprofundar em um terreno muito fértil e perigoso que é a mente humana. Até hoje como relata o texto não compreendo esse desejo humano de matar seus semelhantes por puro prazer ou ódio, não delongarei e não repetirei as crueldades infrigidas aos próximos de nós. Somente o psiquiatra , ou nem mesmo ele, consegue decifrar porque chegamos a tais raias da crueldade. Até hoje não consigo entender a morte de milhões de judeus por um único “ser”que recuso chamar de humano , um tirano que se sentia superior a todos ditador cruel (Hitler ) sob a alegação daquela mente insana achar-se raça superior. E muito inútil falar desse “ser” já que sua memória manchada de sangue ficará para sempre enquanto tiver um humano na terra. Hoje estamos vivendo outra matança desnecessária de velhos, jovens e crianças, animais por pura sede de poder novamente Rússia × Ucrânia. A memória daquela potência ficará manchada de sangue para todo sempre. No nosso cotidiano como bem ressaltou o autor a violência desenfreada “nós matamos os nossos familiares, os nossos filhos, os nossos pais, os nossos cônjuges, os nossos irmãos e irmãs, os nossos primos e sogros.

    Matamos estranhos. Matamos pessoas que são diferentes de nós em aparência, crenças, raça e estatuto social.” E discorre ali uma série de crueldades contra o semelhante e até contra os animais por puro prazer de matar. De fato estamos caminhando para um caos na terra. É preciso dar um basta nesse série de atrocidades que estamos vivenciando. Fico com o escritor e poeta Mário de Andrade para finalizar “(…) Não prego a guerra nem a paz, eu peço amor!
    Eu peço amor em todos os seus beijos,
    Beijos de ódio, de cópula ou de fraternidade.”. Deixo aqui essa pequena mensagem sobre texto tão belo e ao mesmo tempo tão realista.

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