Urbanismo sem vínculo social

(Paraisópolis, na bairro do Morumbi, São Paulo)

Vitrúvio, no seu clássico “Tratado de Arquitetura”, escrito em 27 a.C., dedicou vários tópicos aos aspectos de salubridade nas escolhas urbanísticas. Sugeria que as cidades e suas construções deveriam ser pensadas com fito nos seus habitantes!

Ficaria surpreso com os atuais amontoados de “moradias” que desconsideram os mínimos cuidados sanitários e preocupações com locomoção, lazer e segurança (em todos os aspectos, inclusive os “naturais”).

As favelas, rebatizadas eufemisticamente de comunidades, dominam a paisagem das grandes cidades, como símbolo do desprezo e da falta de respeito social – e racial – que a “sociedade” e os políticos fingem não ver.

As favelas surgiram, basicamente, após o fim formal da escravidão (os negros tiveram que se virar, sem renda, emprego – a preferência foi dada a imigrantes – terra, educação e habitação) e, ao fim da Guerra de Canudos (1897), quando um grande número de soldados desembarcaram no Rio e, sem moradia, foram invadindo uma antiga chácara no Morro da Providência.

Escolha dos lugares para as cidades

“Primeiro, a eleição de um lugar o mais saudável possível. Ele será alto e não nebuloso, sem geadas e voltado para um quadrante que não seja nem quente nem frio, mas temperado.

Depois, a vizinhança de pântanos será evitada. (…) (Vitrúvio)

Apesar da desigualdade socialmente planejada e aceita, expressa no traçado das cidades, os moradores das favelas resistem, graças à solidariedade, à sua potência e à auto-organização, que emerge praticamente sem apoio público.

“O labirinto nos tornou engrenagens; reivindicar o direito de sermos gente todos nós é também libertar o labirinto de sua tragédia e transformá-lo em cidade”, diz Emicida num novo livro de Raquel Rolnik.

“São Paulo é uma cidade fragmentada, que aparenta não ser fruto da ordem, mas sim filha do caos, da competição mais selvagem e desgovernada de projetos individuais de sobrevivência e ascensão, do sonho de gerações sucessivas de migrantes e imigrantes em busca de refúgio e oportunidades e da potência da grande cidade.” (Rolnik)

Quando cheguei a São Paulo, fiquei impressionado com o esbanjamento de recursos no trato dos imóveis: há um processo constante de destruição e reconstrução visando uma eterna modernidade e enriquecimento das empreiteiras.

Uma cidade que não preserva a riqueza já feita – como as cidades européias – e torna-se uma espécie de “palimpsesto” urbano, desde os tempos de Prestes Maia, o “prefeito urbanista”. Há dinheiro sobrando, menos para os que dele precisam.

Segundo Fernando Atique, São Paulo, “mais do que uma Pauliceia desvairada é uma Pauliceia esfacelada”.

Jane Jacobs (1916-2006) parece não ser lida pelos que respondem por urbanismo. Seu livro, de 1961, iniciou uma revisão dos paradigmas modernos, numa espécie de antropologia urbana. Ela elegia a diversidade espontânea da “rua” como símbolo de vitalidade, em contraposição aos espaços rarefeitos (como os propagados por Le Corbusier). Era contra a ideia – ainda viva – de separar os usos do solo nas cidades, em bairros industriais, comerciais e residenciais (estes, com várias redomas e segmentações sociais).

O foco de suas críticas era o processo comum nas grandes cidades, de “renovação urbana” das áreas centrais, fazendo tábula rasa de setores urbanos consolidados, substituindo-os por megaprojetos de reurbanização nos quais uma arquitetura burocrática ou monumental, viadutos, elevados, vias expressas e florestas de concreto configurariam a nova paisagem.

Algo me lembra São Paulo.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

Um comentário em “Urbanismo sem vínculo social

  1. Vitrúvio, no seu clássico “Tratado de Arquitetura”, escrito em 27 a.C., dedicou vários tópicos aos aspectos de salubridade nas escolhas urbanísticas. Sugeria que as cidades e suas construções deveriam ser pensadas com fito nos seus habitantes! Não é espanto ver o amontoado de pessoas em favelas que para maquiar o problema de moradia deu-se o nome de “comunidade” , sem se falar na quantidade de pessoas que nesse Brasil varonil moram em barracas, em baixo de viadutos, marquises de comércios, ou até mesmo ao relento. Os chamados” invisíveis ” que escancarou mais nos últimos anos com a pandemia do corona vírus. A fome assola essas comunidades e os invisíveis. Seria utópico demais acreditar que qualquer governo ou urbanistas renomados tenha remédio para esse mal que assola os grandes centros, especialmente São Paulo que conheço bem . Conheci São Paulo nos áureos tempos onde foi tema de várias músicas da MPB, a venerada AV. Paulista, Viaduto do Chá, Rua São Bento, Teatro Municipal, onde mperava o glamoure nós tínhamos o prazer de passear e fazer compras. Não reconheço mais minha linda São Paulo, onde impera a sujeira,
    lixões e os invisíveis, seguindo aos bairros não tão nobres a cada espaço vago começa-se ali os bolsões de pobreza chamadas comunidades, onde falta desde a comida, até os mais comezinhos direitos básicos como luz, água potável esgoto, Internet. Sem se falar a saúde precária. Fazendo alusão a SP Capital, me estendo a outros Estados como Rio de Janeiro que em nada difere urbanamente de São Paulo , quiçá outras capitais desalinhadas que não cheguei a conhecer. Digamos que o problema do urbanismo nas grandes capitais se tornou um mal incurável. Não creio que nenhum governo em todas as esferas Federal, estadual e municipal dê jeito. Fico por aqui já que se tratado mal incurável o problema do urbanismo nas grandes capitais. Hoje Vitrúvio (se vivo ) no seu tratado não perderia tempo escrevendo sobre um mal incurável.

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