
A literatura, a poesia em especial, nos permite ver outras realidades e, fazermos questionamentos do “real”. Real é o que acreditamos que exista, conforme nossas lentes mentais.
Assim como nos sonhos, a imaginação nos transporta para realidades virtuais, aumentadas ou mistas, desde sempre; multiversos à nossa disposição, baseados nos nossos próprios algoritmos inconscientes.
Ao abandono distraído de nossas capacidades reflexivas e críticas, entregues aos gigantes dos dados (que em troca da gratuidade assumirão nossos gostos, preferências e crenças), sempre restará o exercício poético – até isso também ser proibido.
A poesia é feita de uma realidade específica: ambiguidade, imprecisão, sutilezas, textura rarefeita, colorido especial, desejos indesejáveis, insegurança, fragilidade, potência, e tudo o mais que não presta. Não presta para a reprodutibilidade do status quo. Ela tem mais simpatia pela filosofia do que pela ciência.
“Uma única Rosa
É agora o jardim
Onde todos os amores findam.”
(T. S. Eliot)
Espólio
“No fim de tudo, quando os adorados
Membros forem torrões no pó incrustados,
Quando os móveis tiverem, muito antigos,
Dado ceia aos cupins, fogo aos mendigos,
Quando os papéis rolarem já nas poças
E o chão pisarem nem nascidas moças,
Quando outras gerações, sem nome nosso,
Olharem para o céu sempre em esboço,
E os restos nossos, sem que a vida atine,
Dormirem num promíscuo de vitrine,
Sem um vínculo mais, um gesto, um preço,
Sem mesmo as casas, sem seu endereço
Também mudado já, sem um resquício
Do nosso rude amor, nosso suplício,
Então só sobrarão, no tempo emersos,
Uns versos, como agora, uns rijos versos.”
(Alexei Bueno, Rio de Janeiro, 59 anos)
“eu quero saber
quando foi
que eu deixei de ser eu
a eu que eu gostava
a eu que eu tinha orgulho de ser
quero saber quando foi
que me perdi de mim
em que estrada eu me deixei
em que esquina eu me esqueci?
eu tenho em mãos
um espelho quebrado
em cada fragmento
eu vejo um pedaço
não sei montar esse quebra-cabeças
e ver um inteiro em metades
é como se algo faltasse
e meus braços curtos
não alcançassem
o potencial que me pertence
mais que ainda não é meu de verdade”
(Letícia Freitas, Maceió, 19 anos)
Segue o Teu Destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.”
(Ricardo Reis)