Ninguém estava ameaçando ninguém!

(George F. Kennan, 1904-2005)

“Como um político nunca acredita no que diz, fica surpreso quando outros acreditam”. (Charles de Gaulle)

George Kennan viu de tudo. Morreu em 2005, aos 101 anos. Ele foi o grande estrategista americano durante a Guerra Fria.

Quando a II Guerra acabou, ele recomendou “uma política a longo prazo, paciente mas firme e vigilante, de contenção das tendências expansionistas russas”.

Estava presente na criação da OTAN e um artigo, que publicou anonimamente em 1947 (no jornal Foreign Affairs), definiu a política de contenção da Guerra Fria dos Estados Unidos por 40 anos.

Isso inspirou a Doutrina Truman e o Plano Marshall (conforme proposto por Keynes em 1944).

O que deveria ser uma luta diplomática, financeira e ideológica contra a ameaça comunista (assim entendia Kennan), transformou-se numa louca corrida armamentista – convencional e nuclear. As coisas nunca saem conforme “devem ser”, não é?

Kennan decepcionou-se com este caminho, mesmo assim chegou a ser embaixador americano na União Soviética (em 1952) para … ser expulso como persona non grata.

Continuou sendo crítico a muitas decisões americanas: foi contrário à guerra do Vietnã, à invasão do Iraque …

Em 1991, a URSS caiu. A OTAN, lembremos, havia sido criada para combater o “perigo comunista”. Daí, teoricamente, a OTAN tornara-se desnecessária. Porém …

Como as coisas aconteceram: no desmoronamento da União Soviética, Mikhail Gorbachev tinha o compromisso de James Baker (secretário de Estado dos EUA) de que a OTAN não avançaria em direção ao Leste europeu. Com o baque soviético caía, também, a Guerra Fria. Não? O Ocidente (EUA) vencera. Era só festejar.

A Rússia esperava, até, que o Ocidente a resgatasse econômica e tecnologicamente, com uma espécie de Plano Marshall. Nada. Ela continuou sendo tratada como se ainda fosse inimiga. Tripudiar seria um termo adequado para a atitude americana.

Em 1997, a Otan decidiu expandir a aliança militar ocidental, esquecendo a promessa de Baker. No ano seguinte, o Senado americano aprovou a medida. Houve a adesão de Polônia, Hungria e República Tcheca. Nos anos 2000, outros 10 países da Europa do Leste e dos Balcãs foram agregados.

Em 1998, Thomas Friedman entrevistou George Kennan. Ele estava com 94 anos, mas plenamente lúcido:

“Acho que é o começo de uma nova guerra fria. 

Acho que os russos gradualmente reagirão de forma bastante adversa e isso afetará suas políticas. 

Acho um erro trágico. Não havia nenhuma razão para isso. Ninguém estava ameaçando ninguém! 

Essa expansão faria os Pais Fundadores deste país se revirarem em seus túmulos. Nós nos inscrevemos para proteger toda uma série de países, embora não tenhamos nem os recursos nem a intenção de fazê-lo de maneira séria. 

A expansão da OTAN foi simplesmente uma ação despreocupada de um Senado que não tem nenhum interesse real em assuntos externos.

O que me incomoda é quão superficial e mal informado foi todo o debate no Senado.

Fiquei particularmente incomodado com as referências à Rússia como um país morrendo de vontade de atacar a Europa Ocidental. As pessoas não entendem? 

Nossas diferenças na guerra fria eram com o regime comunista soviético. E agora estamos virando as costas para as mesmas pessoas que montaram a maior revolução sem derramamento de sangue da história para remover aquele regime soviético.

E a democracia da Rússia está tão avançada, se não mais, quanto qualquer um desses países que acabamos de assinar para defender da Rússia.

Isso mostra tão pouco entendimento da história russa e da história soviética. 

É claro que haverá uma reação ruim da Rússia, e então os que expandem a OTAN dirão que ‘sempre dissemos a vocês que é assim que os russos são’, mas isso é simplesmente errado.

Só nos perguntamos o que os futuros historiadores dirão. 

Se tivermos sorte, eles dirão que a expansão da OTAN para a Polônia, Hungria e República Tcheca simplesmente não importava, porque o vácuo que deveria preencher já havia sido preenchido.

Eles dirão que as forças da globalização que integram a Europa, juntamente com os novos acordos de controle de armas, provaram ser tão poderosas que a Rússia, apesar da expansão da OTAN, avançou com a democratização e a ocidentalização, e foi gradualmente arrastada para uma Europa frouxamente unificada. 

Se tivermos azar, eles dirão que a expansão da OTAN criou uma situação em que a OTAN agora tem que se expandir até a fronteira da Rússia, desencadeando uma nova guerra fria, ou parar de expandir além desses três novos países e criar uma nova linha divisória através da Europa.

Mas há uma coisa que os historiadores do futuro certamente comentarão, e essa é a extrema pobreza de imaginação que caracterizou a política externa dos EUA no final dos anos 1990. 

Eles notarão que um dos eventos seminais deste século ocorreu entre 1989 e 1992 – o colapso do Império Soviético, que tinha a capacidade, intenções imperiais e ideologia para realmente ameaçar todo o mundo livre. 

Graças à determinação ocidental e à coragem dos democratas russos, aquele Império Soviético desmoronou sem um tiro, gerando uma Rússia democrática, libertando as ex-repúblicas soviéticas e levando a acordos de controle de armas sem precedentes com os EUA

E qual foi a resposta da América? Era para expandir a aliança da Guerra Fria da OTAN contra a Rússia e aproximá-la das fronteiras da Rússia?

Sim, diga a seus filhos, e aos filhos de seus filhos, que você viveu na época de Bill Clinton e William Cohen, na época de Madeleine Albright e Sandy Berger, na época de Trent Lott e Joe Lieberman, e você também esteve presente na criação da ordem pós-guerra fria, quando esses titãs da política externa juntaram suas cabeças e produziram . . . um rato.

Estamos na era dos anões. 

A única boa notícia é que chegamos aqui inteiros, porque houve outra era – uma de grandes estadistas que tinham imaginação e coragem.

Esta tem sido a minha vida, e me dói vê-la tão estragada no final.”

Os ocidentais desprezaram os russos. Fato. Isso iria gerar ressentimentos contra o Ocidente. Sim. No entanto, a vingança poderia ser através da superação – via tecnologia, economia – não por um ataque a um país livre! O fato de sermos provocados ou humilhados não nos autoriza a sair matando.

Estamos esperando que os EUA caiam na Armadilha de Tucídides, quando atacarem a China. Essa guerra da Rússia contra a Ucrânia não restaurará o orgulho russo; é só uma estupidez. Um narcisista jogo do poder.

A Armadilha de Tucídides (século V a.C.) refere-se à Guerra do Peloponeso, quando os espartanos ficaram “preocupados” com o crescimento do poder de Atenas, o que tornou a guerra “inevitável”.

Pondo as coisas em perspectiva: uma guerra entre nações, como a que ocorreu em 1914, visaria preservar os interesses das classes dirigentes (políticas e econômicas), em prejuízo dos das populações. Na II Guerra, alegava-se que a disputa era (supostamente) entre os valores da liberdade contra a submissão. Mesmo assim, a URSS como aliada distorcia esse pretexto. Era só um tipo diferente de submissão. Não dá para “explicar” o porquê das guerras.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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