
Somos intrinsecamente bons ou maus? Esta questão sempre me persegue. Eu me considero uma pessoa boa, que procura naturalmente não causar mal aos outros. Mas, sei que sou capaz de infligir sofrimentos, dadas certas circunstâncias.
Imagino que a maioria das pessoas é assim, boa, e má quando necessário. Eu disse “maioria”. Há aqueles que acordam pensando em quem vai ferrar naquele dia. Há bandidos que gostam do que fazem, embora haja muitos que são recuperáveis, se tiverem chance.
Nessa invasão da Ucrânia, como em todas as guerras, vê-se soldados matando outros, desconhecidos, e até civis, crianças. Soldados não são gente; são treinados, doutrinados, para perderem sua humanidade em nome de disciplina, pátria, honra … A maioria sai traumatizada; outros, em menor proporção, passam a gostar de sangue.
Hannah Arendt percebeu o óbvio: a capacidade de anulação do ser humano, necessária para a bestialidade da guerra. Óbvio, mas que ninguém falava sobre esse requisito, sobre a transformação em feras daqueles que aceitam se submeter aos preceitos de autoridade.
No julgamento de Eichmann em Jerusalém, ela viu um dos arquitetos da “solução final” transbordando mediocridade: um arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, incapaz de discriminação moral. Era a banalidade do mal. O termo apropriado seria “banalização do mal”, um processo, não um atributo.
O mesmo argumento é válido para milicianos e “soldados” do tráfico.
A sociedade cria e alimenta estereótipos e ideias tipificadas, preconceituosas.
Há um livro de Charles Dickens, “Oliver Twist”, onde figura uma prostituta, retratada como tendo um “coração de ouro”. Muitos contemporâneos de Dickens não gostaram: como se pode “idealizar” uma criminosa como gente boa?! A resposta de Dickens: “É inútil discutir se a conduta e o caráter da moça parecem naturais ou não naturais, prováveis ou improváveis, certos ou errados; são a Verdade!”.
Dickens era um escritor realista. Ele sabia que esses preconceitos não são inocentes e são o estrume das leis. Para ele a lei era pior que estúpida, era malévola.
Acreditar na decência humana é visto como ingenuidade, ou pior, hipócrita. Há, mesmo assim, quem vá contra a corrente:
“Pobre natureza humana, que crimes horríveis foram cometidos em teu nome! (…)
Quanto maior o charlatão mental, mais definitiva sua insistência na maldade e na fraqueza da natureza humana”. (Emma Goldman, que lutava pela liberdade e igualdade femininas – e, vista com desprezo.)
A ideia de que o homem é mau, por natureza, é essencial para a instituição de controles sociais. Muitos pensadores e teólogos a propagaram, como Burke, Bentham, Nietzsche, Freud, Agostinho, Lutero, Calvino …. Maquiavel.
“Para os poderosos, qualquer visão esperançosa da natureza humana é uma ameaça direta. Subversiva. Sediciosa.
Implica não sermos as feras egoístas que precisam ser domadas, restringidas e regulamentadas.
Implica precisarmos de um tipo diferente de liderança.
Uma empresa com funcionários intrinsecamente motivados não precisa de gerentes; uma democracia com cidadãos engajados não precisa de políticos de carreira.” (Rutger Bregman)
Vejam na Economia. Os economistas são “educados”, em geral, para verem as pessoas como sempre atentas ao ganho pessoal, egocêntricas e calculistas; como Homo economicus.
Mas, ninguém foi verificar se essa hipótese é verdadeira. Joseph Henrich foi atrás e suas pesquisas mostraram que, na verdade, as pessoas são simplesmente muito decentes e generosas. Não somos, originalmente, Homo economicus; somos treinados para adquirir essas “habilidades”, de preferência com os pululantes consultores financeiros.
“Um problema parece estar na suposição canônica dos economistas de que os indivíduos são inteiramente autointeressados: além de suas próprias recompensas materiais, muitos sujeitos parecem se importar com justiça e reciprocidade, estão dispostos a mudar a distribuição de resultados materiais a custo pessoal, e a recompensar aqueles que agem de forma cooperativa enquanto punem aqueles que não o fazem, mesmo quando essas ações sejam onerosas para o indivíduo.” (Joseph Henrich e equipe)
Há coisas nas quais cremos e, portanto, “sabemos”. Não é assim? Cada grupo tem suas verdades, que, na sua maioria, são crenças – às vezes necessárias para identificação e aceitação.
Mas, e a maldade diária que vemos na mídia e nas redes não existe? Claro que existe, embora sejam excepcionalidades – como a queda de um avião -, porém é o que mantém a mídia.
Há vários estudos que evidenciam o efeito do conteúdo emocional dos noticiários no estado de humor e na catastrofização das preocupações pessoais. E na crença na maldade humana. Agora, as redes sociais sabem o que nos choca e horroriza, o que mexe conosco, e dá audiência.
As notícias funcionam como uma droga que nos aprisiona no medo que o outro representa. “Elas criam uma falsa percepção de perigo, ansiedade, desânimo, sensação de desamparo, desprezo e hostilidade para com os outros, e dessensibilização”, diz Jodie Jackson.
As notícias funcionam como uma espécie de efeito nocebo, que age como o placebo, mas com propósito inverso. Exemplo: se o médico avisar ao paciente que uma droga (ou vacina, por exemplo) tem sérios efeitos colaterais, provavelmente isso vai acontecer.
As ideias não são “apenas” ideias; somos aquilo em que acreditamos; vemos o mundo, fenomenologicamente, a partir de nossas lentes mentais. A realidade é a que me parece.
Bom, posso estar errado. Argumentem.