Fome!

(Josué Apolônio de Castro, 1908-1973)

Em 1929, com apenas 20 anos de idade, Josué de Castro formou-se na Faculdade de Medicina da atual UFRJ e, em seguida, foi estagiar por alguns meses nos Estados Unidos. Depois, voltou para Recife, abriu um consultório, e pouco depois foi contratado por uma fábrica local para cuidar de trabalhadores com um estranho problema de saúde, que os tornava indolentes e apáticos. Essa incumbência mudou sua vida.

Ele não tardou a diagnosticar a doença: “Sei o que meus clientes têm, mas não posso curá-los porque sou apenas médico e não diretor dessa empresa. O mal dessa gente é fome”. Foi despedido.

“A fome se revelou espantosamente aos meus olhos durante a minha infância nos bairros miseráveis de Recife, na lama dos mangues do Capibaribe, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo. São seres anfíbios, habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos, arrastando-se na lama para poder sobreviver. (…) E quando cresci e saí pelo mundo afora, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, um drama do meu bairro, era um drama universal”. (Josué de Castro)

Seu itinerário lhe ficou logo claro: “Comecei a sentir que não interessava ganhar dinheiro. Achava tremendo isso de ficar emagrecendo senhoras gordas da sociedade, enquanto a cabeça me martelava com o problema da fome de tanta gente!”

Gilberto Freyre dizia que o Recife não cresce, incha. Incha com os “cassacos” de engenho expulsos do eito. Os que vêm para a lama, para os mocambos.

João Cabral de Melo Neto escreveu sobre os homens plantados na lama. Homens que, como o Capibaribe, são também cães sem plumas.

Cães sem plumas, surrealisticamente, “é quando uma árvore sem voz./ É quando de um pássaro/ suas raízes no ar,/ É quando a alguma coisa/ roem tão fundo/ até o que não tem.”

Pernambucanos sensíveis ao drama do outro, como Josué de Castro, Chico de Oliveira, Manuel Correia de Andrade, Nelson Chaves, Pedro Augusto Carneiro Leão, Francisco Julião, Ulysses Pernambucano de Mello e outros, estavam atentos à desigualdade social e seus efeitos, principalmente a fome e suas consequências cognitivas, políticas e sociais. Todos foram tachados de “comunistas” pelo “establishment“, latifundiário, coronelista e oligárquico.

“Dizia sempre nas aulas de Fisiologia que o verdadeiro cientista debruçava-se na janela para ver a humanidade atravessar as ruas, as estradas, carregando nos ombros sérios problemas, e procurava sempre aliviá-la de suas angústias e sofrimentos.” (Nelson Chaves)

Muitos não sabem o que é fome. É a pior dor!

Josué de Castro virou uma celebridade mundial, mais famoso que Paulo Freire, outro pernambucano. Chegou a receber três indicações ao Prêmio Nobel em duas categorias distintas: Medicina, em 1953, e Paz, em 1963 e 1970.

A fome voltou a se espraiar, por “descuido” político. Sim, a política é a solução ou o algoz.

O Brasil voltou ao mapa da fome, com 19 milhões de brasileiros com fome grave!

“Pesquisa realizada em novembro e dezembro passados mostrou que 15% estavam em insegurança alimentar grave, e 12,7% em insegurança alimentar moderada, o que significa que corriam o risco de deixar de comer por falta de dinheiroEm relação à população brasileira como um todo, isso equivaleria a 58 milhões de pessoas.

Outros 31,7% estavam em insegurança leve, quando há preocupação de que a comida acabe antes de se ter dinheiro para comprar mais ou faltam recursos para manter uma alimentação saudável e variada.

Segundo a pesquisa, portanto, 59,4% da população enfrentava no final do ano passado algum grau de insegurança alimentar, o equivalente a um total de 125 milhões de pessoas.” (Fonte: https://www.dw.com/pt-br/fome-no-brasil-cresce-e-supera-taxa-de-quando-bolsa-família-foi-criado/a-57187014)

Recentemente, Rafael Leão, aluno da UFPE, de 27 anos, criou um site para aproximar quem tem fome de quem quer doar alimentos. Bela iniciativa! Paliativa.

“O café da manhã da faxineira Luciana Wanderley da Costa, duas netas e o marido foi cuscuz. No armário, pacotes abertos de poucos mantimentos. Na geladeira, quase nada: tempero e um pedaço de carcaça de frango. A família vive da ajuda do governo federal, de R$ 400 reais por mês.”

Um admirador de Josué de Castro, o sociólogo Jean Ziegler (87 anos), escreveu vários livros sobre a fome no mundo.

“A má nutrição devasta particularmente a faixa etária entre zero e quinze anos.

Cerca de 30% dos bebês nascem nos 50 países mais pobres do mundo.

No mundo, a cada quatro minutos, um ser humano perde a visão, torna-se cego, na maioria dos casos por deficiência alimentar. (…)”

(Jean Ziegler)

A fome é o mais escandaloso “problema” no mundo, especialmente no Brasil!

Um país rico, praticamente autossuficiente em grãos (exceto trigo!), com um boi per capita, um gigante global da agropecuária, celeiro do mundo, com pessoas passando fome!

Que políticos temos! Como a sociedade pode aceitar “naturalmente” essa injustiça?

Há ideólogos, como Xico Graziano, que não vêm sentido em se fazer uma reforma agrária hoje. Para ele, isso é coisa do passado, “como na França, há mais de duzentos anos; no México, com Zapata; no Japão, após a Segunda Guerra, ou na Cuba de Fidel.”

Enquanto isso, o agronegócio brasileiro mantém uma concentração fundiária absurda, com 0,3% das fazendas brasileiras ocupando 33% de toda a área de produção agropecuária do país. Isto é Pop!

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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