A morte é parte do complexo da cura (Nilton Bonder)

(Ana Claudia Quintana Arantes)

“A morte é insuportável no Instagram”, diz Marcelo Tas. Lá só se pode “exibir” os melhores momentos, da vida.

Nilton Bonder escreveu vários pequenos livros sobre a Cabala; um deles é “Cabala e a arte do tratamento da cura”. Reflete, claro, sua visão do judaísmo – ele é rabino.

“A vida não é mecanicista, fragmentada, mas orgânica. Ela está associada a um organismo que se intercomunica e existe integrado a uma totalidade.

Mais que isso, a definição de organismo pressupõe um propósito ao corpo vivo que extrapole a própria natureza de seu aparato.

Por propósito não estamos evocando crença ou dogma, mas o fato de que essa vida é anterior e ulterior a si mesma enquanto fenômeno individual.

Ela é um ‘engenho animado’ pela função de preservar um projeto que lhe é exterior.”

Três espaços, temporais e físicos, são referenciados à vida: anterior, ulterior e exterior. Há o interior também, obviamente.

Nosso corpo, instrumento de prazer e dor, “está para a carroça, assim como o viver está para a estrada.”

Quando algo nesse corpo (integral) começa a desandar, há quatro planos para simbolicamente encaminhar-se a cura: no plano físico se Regenera, no emocional se Reabilita, no intelectual se Recupera e, no espiritual se Resgata.

No físico, o corpo regenera e cicatriza; no emocional, o corpo coagula, inflama e calcifica; no intelectual, ele infecciona e imuniza; no espiritual, o corpo desconecta por via de desmaio, coma ou do próprio encerramento da função vital.

Nesse sentido, “a morte é parte do complexo da cura”.

Uma curiosidade: Bonder fez a dramaturgia do espetáculo “Cura”, de Deborah Colker.

Essa desconexão, a morte, é um tabu; evita-se falar sobre ela. Não sou mórbido, ao contrário: a alegria do viver me acorda e me afasta da potencial e real maldade humana. Esse mundo não me engana, embora tentador.

“Quando eu não estiver por perto/ Canta aquela música que a gente ria/ É tudo o que eu cantaria/ Quando eu for embora, você cantará”, diz a canção Estrelas, de Oswaldo Montenegro.

Ana Claudia Quintana Arantes é médica geriatra e cuida de pacientes terminais. Diariamente vê a proximidade do fim e tenta trazer dignidade a esses momentos. Acredita que “a vida digna e feliz é possível até nosso último momento.”

Os pacientes com doenças incuráveis querem falar sobre a morte deles, sobre como vai ser. Querem que respeitem o que falam. Mas ninguém quer escutar.

Transcrevo um desses encontros, narrado no livro “Histórias lindas de morrer”:

“Chego para passar visita e encontro Dona M. de olhos fechados.

Olho bem: sob a pálpebra, o globo ocular se mexe. Ela finge dormir.

Tenho a mania de, sempre que isso acontece (e acontece muito, não me pergunte por quê), chegar perto e pedir, sorrindo e provocando:

– Abre a janela, abre a janela que eu quero te ver.

(Movimentos intensos sob as pálpebras de Dona M., que escondem uns olhos muito azuis.)

– Abre a janela que eu quero te ver! Me deixa ver essa rodinha de céu que você tem guardada aí … Mostra pra mim, que eu tô com saudade.

Ela não resiste e abre os olhos. Começa a sorrir, a sorrir, a sorrir muito mais do que nos últimos dias. Não para mim, mas para alguém às minhas costas.

Olho para trás. Não vejo ninguém.

– Ué, tem alguém aqui? – pergunto.

– Tem, doutora, a senhora não está vendo?

– Não estou vendo, não. Quem é?

– Doutora, a senhora não está vendo? Tem um anjo, doutora, e ele está estendendo a mão para a senhora.

– E para que lado eu dou a mão, Dona M.? – pergunto, levantando os braços.

– A senhora não está vendo? Abre a janela, doutora.”

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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