
Que livro!
Leyla Afife Kamile, carregava no nome a pretensão paterna. Leyla significava que ela levava a noite nos olhos; Afife, “casta, imaculada” e, Kamile, “perfeição”. Ela deveria ser pura como a água. Mas, nem toda água é pura.
A história começa quando Leyla, agora Leila Tequila, está morta, numa lata de lixo, num subúrbio de Istambul. Ela era prostituta e fora vítima de um serial killer. Como, aquela criança, a redenção de um lar, chegou à prostituição e à morte pelas mãos de um de seus 10 a 15 clientes diários?! Disso trata o livro.
Nenhuma vida é insignificante, desprezível; nem a de um verme, nem de uma árvore, nem a de Leila. Tudo está relacionado, intrincado. E a História é, em parte, um fenômeno contingencial, cultural – portas fechadas, restrições, aspirações contidas -, um contexto.
Leila está morta, dizia. Durante os 10 minutos e 38 segundos que o cérebro leva para parar de funcionar, ela vai relembrando sua vida trágica, embora com momentos de singela felicidade.
“Embora seu coração houvesse parado de bater, seu cérebro resistia, recusando-se a desistir.
Ele entrou num estado de consciência aumentada, observando a morte do corpo, mas não disposto a aceitar o próprio fim.
A memória de Leila correu adiante, ansiosa e diligente, coletando pedaços de uma vida que se esvaía depressa.”
Ela percebeu que, até certo ponto, os cadáveres transbordam de vida.
Somos ligados em marcos, mas nossa existência é pautada por extensões: os mortos não morrem instantaneamente – eles continuam refletindo sobre as coisas, inclusive sobre o próprio fim; levam-se anos para se aprender o que é ser casado; demora para que nos apercebamos do papel de pais ou avós; a ficha demora a cair para entendermos o que é estar desempregado etc.
O triste, na morte, é a compreensão de que ela não terá impacto sobre a ordem das coisas, de que a vida continuará exatamente igual com ou sem nós. A consciência de nossa irrelevância. Que pena quando só a morte nos ensina isso.
Leila era filha da segunda esposa de seu pai. O Alcorão permite que um homem tenha até quatro esposas, contanto que seja “justo” com elas. Para as mulheres, “naturalmente”, a poligamia é proibida – aliás, elas só podem se casar com muçulmanos, embora os homens possam se casar com uma não-muçulmana. Para elas, caso queiram ter relações com mais homens, resta a prostituição.
“10 minutos e 38 segundos” é o nome do livro. Elif Shafak é a autora. Vou procurar alguns de seus outros 17 livros.