
“Caminhamos para um novo universo. E, sem dúvida, é nesse que tudo vai bem; porque, convenhamos, o que ocorre no nosso, física e moralmente, justifica ligeiros lamentos”
Assim falava Cândido, contrariado. Afinal, seu mentor, Pangloss, repetidamente lhe “provara” que os bens da terra são comuns a todos os homens, e que temos, cada um, iguais direitos sobre eles.
Ingênuo, o Cândido, percebemos. Afinal, seu nome reflete sua pureza, que também foi a origem do termo Candidato. Puros de coração.
Mas, percebam, o Cândido antecipou o Metaverso!
Shakespeare já havia colocado na boca de Ulisses, em Tróilo e Cressida:
“(…) Todas as coisas no poder se abrigam; o poder, na vontade, que se abriga, por sua vez, na cobiça.
Ora, a cobiça, esse lobo de todos, tendo o apoio redobrado da força e da vontade, transforma logo em presa o mundo todo, para a si mesmo devorar por último.”
As forças que movem o mundo são teleguiadas por um Ser superior ou, pelos que, aqui, se julgam superiores?
“Vivemos no melhor dos mundos possíveis”, escrevera Leibniz. Explicava que:
- Deus tem a ideia de infinitos universos;
- Apenas um desses universos pode realmente existir;
- As escolhas de Deus estão sujeitas ao princípio de uma razão suficiente, ou seja, Deus tem motivos para escolher uma coisa ou outra;
- Deus é bom;
- Portanto, o universo que Deus escolheu existir é o melhor de todos os mundos possíveis.
Voltaire criou o personagem Pangloss para ironizar Leibniz, ao repetir seu mantra: “Está provado que as coisas não podem ser de outra maneira, porque, sendo tudo feito para um fim, tudo existe necessariamente para o melhor dos fins.”
Um silogismo furado, porque as duas premissas (“as coisas não podem ser de outra maneira” e “tudo foi feito para um fim”) são questionáveis.
Por trás está a ideia de que Deus é bom e, sendo o criador, cuidaria de suas criações.
Lembro do famoso paradoxo atribuído a Epicuro, que achava que Deus não se preocupava com os assuntos dos homens.
Dizia que se Deus é bom, onisciente e onipotente, tem, então, conhecimento de todo o mal e pode, naturalmente, acabar com ele. Se não o faz é porque não quer, o que significa que não é benevolente. Ou, não sabendo onde está o mal, não é onisciente. E, finalmente, se ele sabe onde o mal reside e quer evitá-lo e não o faz, então não é capaz, não é onipotente.
É difícil conciliar essa ideia de um bem absoluto e o mal visível.
Ainda hoje vi um post que anunciava que “Nenhuma folha cai sem a permissão de Deus … na hora certa tudo fará sentido.”
Não sou determinista; não creio que este “paraíso” foi planejado – inclusive a queda das folhas e da maçã de Newton. Até o “paraíso” original, como sabemos, se foi pensado, foi mal planejado. Não dá para contar com o homem. Mas, “… a queda e a maldição do homem estavam necessariamente previstas para o melhor dos mundos possíveis”, dizia Pangloss.
O mundo, na minha opinião – que nada vale – é contingente. As possibilidades são várias e algumas emergem, circunstancialmente. Deu certo, vai seguindo; deu errado, anula-se.
O homem e o mundo não são necessariamente bons. O mundo não sabe o que é isso; o homem, mesmo sabendo, pode optar pela maldade.
Liberdade, nesse contexto, é algo com muitas restrições. Podemos pensar como na estatística, em graus de liberdade, considerando-se os dados que são livres para variar quando se faz uma estimativa de parâmetros.
O livro “Cândido ou o Otimismo” foi publicado em 1759. Em 1755 havia acontecido um terremoto em Lisboa. Era um feriado, dia de Todos os Santos. Mesmo assim, podem ter morrido até 60 mil pessoas.
Os religiosos – e a Universidade de Coimbra – promoveram um auto-de-fé para aplacar a fúria divina: “… o espetáculo de algumas criaturas queimadas a fogo lento, em grande cerimônia, um segredo infalível para impedir a terra de tremer”, ironiza Voltaire.
Esse evento gerou muito debate. Na época, as notícias chegavam de forma fragmentada e esporadicamente. Permitia, então, que a imaginação completasse a realidade. Atualmente, Walter Benjamin já antecipara, a informação matou a experiência.
Acreditava-se (acredita-se) que a história escondia um plano da Providência. Sem isso, muitas religiões perdem o sentido (celestial).
Rousseau, isentando Deus e a natureza, alegou que a culpa era dos humanos; afinal, não foi a natureza que “reuniu 20 mil casas de seis ou sete andares numa área relativamente exígua”. Foi, pelo menos, um pioneiro na prevenção de desastres “naturais”.