
Uma das minhas filhas mais novas, Anita Pequeno, registrou sua impressão sobre o que seria um lar.
UM LAR, por Anita Pequeno
“A casa virou um lar quando a parede, rente à minha mesa de estudos, ficou com as marcas dos meus pés sujos… quando o gato da rua passou a ter mais medo de mim do que eu dele e entendeu que não pode entrar pela janela… quando as plantas cresceram para além das grades, emaranhando-se nelas, buscando o melhor toque do sol… quando derramei o terceiro copo de cerveja no sofá.
Aliás, quando, sentada nele, aprendi a bordar.
Ela virou um lar quando me fez refletir sobre a morte que veio buscar meu vizinho quando somente uma parede nos separava.
Virou um lar, definitivamente, quando os passarinhos decidiram fazer um ninho e procriar.
Acho que só virou um lar para eles quando decidiram aumentá-lo e gerar mais bebês. Uma, duas, três vezes… até que, como é comum ao cotidiano do lar, acostumamo-nos, nós e eles, com a partilha das nossas presenças.
A casa virou um lar quando eu perdi o medo de dormir sozinha, porque ela, na sua materialidade, me ajudou a criar as estratégias para domar o medo.
Na sua imaterialidade, ela me disse que lares não são só casas, são quaisquer espaços onde encontramos abrigo.
Ela me disse que o medo é consequência da violação dos nossos espaços, por isso, onde há abrigo, há lar e não há medo. Por isso também o abrigo pode ser qualquer canto, como um abraço ou uma memória.
Alice Walker uma vez disse: “existe consolo maior do que o que encontramos nos braços de uma irmã?”.
O espaço do nosso corpo, o espaço da nossa casa ou o espaço do nosso ninho… todos sagrados no seu propósito de abrigar seres que crescem. Foi assim que a minha casa me ensinou a ir embora.”
O que é, afinal, o lar? O doce – às vezes infernal – lar?
O lar poderia ser a nação, hoje espezinhada e fragmentada por interesses de manipuladores. Ou a cidade, onde nascemos, e que não acolhe, acuda ou estimula seus incautos cidadãos.
Ou, naturalmente, o lar tradicional, que se reconfigura com a crescente autonomia profissional (econômica) da mulher e, do abandono paulatino dos avós.
O lar, que etimologicamente (“Laris“) significa ” Deus que protege a casa”, precisará de nova acepção.
Talvez, uma que antecedeu à figura personalista de Deus, na sua imanente projeção: a natureza.
Afinal, dizia-se: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela.” (Salmos 127:1)
Lar representa, antes de tudo, as memórias que se criam, os afetos que se distribuem, o respeito que se cultiva.
O lar é um útero, onde você se nutre e se personifica.
Te amo, pai!
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