JANDIRA (Murilo Mendes)

(Pintura de Richard Kuhn)

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.


E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados,
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira…

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
De cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.


E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.


Os namorados passavam, cheiravam os seis de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.


E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.


E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.

E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
Apareceram ritmos que estavam de reserva,
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.

(A própria história da poesia. A metamorfose poesia/mulher)

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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