Falei noutro dia sobre os invisíveis; agora, abordo os intocáveis.
Temos por aqui os que são intocáveis porque são inalcançáveis, inatingíveis, ninguém pode lhes tocar e, há aqueles que são intocáveis porque ninguém lhes quer tocar, e eles não tocam nosso coração.
Os primeiros são os poderosos, principalmente os políticos, os magistrados, altos empresários, herdeiros, os encastelados na burocracia do poder e seus puxa-sacos.
Nós, entretanto, em geral, somos corresponsáveis pelo modo como somos governados. Nós os elevamos ao poder e passamos a reverenciá-los como “autoridade”; nós adquirimos seus produtos; nós nos curvamos à burocracia; nós nos calamos e nos resignamos.
Os que evitamos tocar e que não tocam nossa sensibilidade, os mendigos, os viciados, os desalentados, os desempregados, os entregues aos seus “destinos”, vemos como fracassados, fracos de empenho e de caráter. Parece um castigo merecido, afinal não se esforçaram suficientemente.
“São aqueles que andam a caminho de nada. Vagueiam, dormem ou estão só de olhos abertos, com o espanto de quem não é deste mundo”, no dizer de Alexandra Lucas Coelho.
Circulam por calçadas, ocupando o espaço dos não-miseráveis, onde à noite hão de estender seus corpos. Perturbam o bem-estar da “minoria hidratada que sobe e desce as escadas dos shoppings, esta imensa minoria que a maioria dos brasileiros aspira a ser, às prestações”
Karl Jaspers, em A Questão da Culpa, enumera quatro tipos de culpa. Cabe aqui a Culpa Metafísica (as outras são a Criminal, a Política e a Moral):
“Existe uma solidariedade entre pessoas enquanto pessoas, que torna cada um corresponsável por toda incorreção e toda a injustiça no mundo, especialmente por crimes que acontecem em sua presença ou que são do seu conhecimento.
Se não faço o que posso para evitar isso, também tenho culpa.
Se não dediquei minha vida a evitar o assassinato de outros, mas fiquei ali, sinto-me culpado de certa forma que não é compreensível do ponto de vista jurídico, político e moral.
O fato de eu ainda estar vivo ao acontecer certa coisa deita-se sobre mim como uma culpa inextinguível.
Como seres humanos, se não formos poupados disso por um golpe de sorte, chegamos a um limite, que temos que fazer uma escolha: arriscar a vida incondicionalmente, sem objetivos, por não haver perspectiva de sucesso, ou preferir ficar vivo, pela impossibilidade de sucesso.
O fato de vigorar em algum lugar entre as pessoas a incondicionalidade de viver apenas em comunidade ou então não viver – caso sejam cometidos crimes contra um ou outro, ou caso as condições de vida precisem ser divididas – é o que perfaz a substância de sua essência.
Mas isso não se estende à solidariedade de todas as pessoas, nem de todos os cidadãos, nem mesmo de grupos menores, mas se restringe apenas à mais íntima ligação humana, e é o que perfaz essa culpa de nós todos – a instância é apenas Deus.”
Identifico-me com os desprovidos, os desassistidos; aqueles intocáveis que fracassaram na vida. O vão sucesso, que cega a muitos, não é a estrela que me guia.
Lembro-me de um ilustre fracassado, Darcy Ribeiro:
“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras. Tentei salvar os índios. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente, mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”
muito bom
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Obrigado, Marcelo.
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Eu me identifico com a sua fala.
Reflexão para todas as pessoas.
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