
A vertiginosa velocidade das mudanças em curso, em todos os meios humanos, tem tornado, a muitos de nós, desassociados com o ambiente ao redor e, até consigo mesmos.
Há um deslocamento, um distanciamento crescente, entre nossas aspirações, desejos, sonhos e a nossa realidade. Mesmo quando parte desses desejos é atingido, a insatisfação (a infelicidade) é reavivada.
Isso é sabido há muito (o Budismo tem essa noção como um alicerce central de sua filosofia), porém a exponencial capacidade de exposição – via redes sociais, principalmente – dessa montanha de gente, tende a manter o frisson do consumo e das aspirações num nível insustentável e inalcançável.
Há uma esquizofrenia social já visível, com perda de contato com a realidade e tendência antissocial, que tem levado milhões de pessoas a procurarem suas identidades nos outros, em grupos identitários, ideológicos, religiosos – nichos, tribos, com algum grau de acolhimento.
Isso implica em arregimentação populista ou fundamentalista e, aparece, para o antropofágico capitalismo, como oportunidades de negócios. Daí, o metaverso e seu ambiente tecnológico, que responde a essa “dor” com a possibilidade de se atender a todos esses simulacros de felicidade, embora revestidos de artificialidade, virtualidade. Tendemos a ficar chapados oficialmente, vivendo noutros mundos, antecipando os multiversos.
Esses movimentos me levaram a procurar um livro importante: “Homem Invisível”, de Ralph Ellison, de 1952. Este livro, premiado, é considerado por muitos críticos, como o grande romance norte-americano de sua geração.
Embora a invisibilidade do protagonista decorra de sua raça, é atual e válido para os “garis” – eternos invisíveis – de nossa sociedade de consumo.
“Sou um homem invisível. Não, não sou um espectro … Sou um homem com substância, de carne e osso, fibras e líquidos, e talvez até se possa dizer que possuo uma mente.
Sou invisível – compreende? – simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver. (…)
Quando se aproximam de mim, só enxergam o que me circunda, a si próprios ou o que imaginam ver – na verdade, tudo, menos eu. (…)
A invisibilidade a que me refiro decorre de uma disposição peculiar dos olhos daqueles com quem entro em contato.
Uma questão de construção de sua visão interior, aqueles olhos com os quais olham a realidade através dos olhos físicos.
Algumas vezes é vantajoso não ser visto, embora, na maioria das vezes, seja emocionalmente muito desgastante.
Uma vez mais, você duvida de que realmente exista. (…)
É quando você se sente assim que, partindo do ressentimento, começa a repelir as pessoas.”
Quem duvida de sua existência, quem não se vê – até por repúdio, por desacordo com seus ideais – quem não se aceita, tende a não aceitar os outros (exceto seus referenciais e mitos).
Isso é ótimo para os políticos oportunistas (desculpem-me a redundância), que criam e manipulam seu perigoso grupo de fiéis, sonâmbulos, zumbis – ressentidos, odiosos.
Para Ellison, o mundo não caminha como uma flecha ou espiral, mas como um bumerangue.
Essa invisibilidade, até de si mesmo, conduz à alienação e à insegurança, ao medo do fracasso e do cancelamento. A falta de respeito pelo outro torna-se regra; a objeção ao ambiente que se considera nocivo a seus projetos (na verdade, apenas desejos) resulta na negação do estabelecido, incluindo-se as instituições e a ciência.
A liberdade torna-se fuga, com desprezo pela liberdade do outro. A irresponsabilidade, relacional e social, se avulta. As pessoas não se vêem – nem aos outros – na sua totalidade, mas apenas de modo instrumental, fracionado, borrado.
Tudo é fonte permanente de ansiedade, angústia e desassossego.
“Homem Invisível é um livro sobre a construção do self, é sobre a construção de nossa identidade mais particular e indivisível, e o sem-número de batalhas constantemente travadas contra a tirania das expectativas e projeções sociais com que temos que lidar.” (Gabriel Trigueiro)
Parece que os interesses da arte e da democracia – que deveriam convergir para o desenvolvimento de cidadãos conscientes e articulados – estão indo para o ralo da história.
A grande complexidade humana, com sua imaginação integradora, acaba por ser suplantada por estereótipos e véus sociais.
Lembro, também, que o budismo anunciava um homem liberto de suas correntes autoimpostas.
A palavra budismo vem de budi, que significa (em sânscrito) “acordar, tornar-se consciente”.
“Harry: Posso-lhe afirmar, não é para mim que você está olhando,
Não é para mim que você sorri forçadamente, nem para mim são seus olhares secretos.
Acuse, se quiser, aquela outra pessoa, se é que existe,
Que você pensava que fosse eu: deixe a sua necrofilia alimentar-se daquela carcaça … “
(T. S. Eliot)
Muito boa essa reflexão. Relevante mesmo.
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Obrigado, Alessandra.
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