
Um político decorou um versículo e vive a repeti-lo: “… e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, conforme João 8:32. Não viu o versículo anterior: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos”. Isso dá trabalho: requer abandonar a mentira como prática e ter pensamentos e atitudes cristãs.
A liberdade a que Jesus se refere não é a social, mas a espiritual, tanto que, em seguida afirma que “quem comete pecados é escravo”. Escravo das paixões.
Sempre que escuto esta importante mensagem, saída da boca de falsos pastores e de políticos, lembro-me da fábula A Verdade e a Mentira, atribuída à tradição judaica:
“Num dia ensolarado, a Mentira e a Verdade saíram a passear. Encontraram um poço que se apresentava muito convidativo. Tiraram a roupa e caíram na água.
Quando a Verdade ficou distraída (é comum), a Mentira saiu e vestiu as roupas da Verdade.
Quando esta saiu da água, negou-se a usar as vestes da Mentira. Saiu nua a perseguir a Mentira.
As pessoas que as viam passar acolhiam a Mentira com as vestes da Verdade, mas proferiam impropérios e condenações contra a atitude despudorada da Verdade.
Ou seja, ninguém atura a Verdade nua. Para a Mentira, por outro lado, sempre há quem a receba e a trate bem.”
Tomás de Aquino definiu a verdade como expressão da realidade. Porém, em épocas de versões, metaversos, embriaguez da expressão popular, mudanças no cerne dos regimes e sistemas econômicos (sim, está em curso), populismo etc., fica difícil reconhecer, até, a Verdade.
A própria realidade é escorregadia, os físicos ainda não a conhecem em definitivo.
A verdade, então, é polêmica. Kant a via como “a concordância do conhecimento com o seu objeto”. Bom, como distinguir conhecimento de reconhecimento? O desconhecido pode nos parecer verdadeiro? Para muitos, pode; daí aceitam como fatos algumas especulações absurdas.
A verdade deveria ser uma base estável para que houvessem relações de confiança. Como as verdades absolutas, trazidas pelas religiões, foram postas em dúvida ou ignoradas, elas tornaram-se relativas. A confiança sumiu. O tecido social, antes monolítico, tornou-se poroso e absorvente de várias verdades.
Acreditava-se, por exemplo, no mito órfico-platônico, incorporado pelo judaísmo-cristianismo, baseado no dualismo de corpo e alma. O corpo morre, a alma não.
A neurociência nos diz, hoje, que toda a função cerebral para quando o eletroencefalograma se torna plano. A perda de consciência torna-se irreversível.
O fato é que a crença na imortalidade da alma (e na ressurreição dos mortos) tinha uma função social essencial, ao contribuir para “assegurar a perpetuidade da vida no grupo”, dizia Durkheim.
Voltando à Verdade.
Claro que muitos tentarão impor uma verdade como a Verdade. O ser humano, em geral, busca uma “verdade” comum, que é o Bem. Como não se estuda lógica, fica difícil separar o justo do injusto e o verdadeiro do falso. Os algoritmos imporão essa lógica, com seus vieses.
Pascal já constatava a presença de limites que impedem que possamos obter uma concepção absoluta de verdade, seja em sentido teórico ou prático. No entanto, lembremos, ele criticava os libertinos (os que negam a religião revelada) e os céticos (que colocam tudo em dúvida). Isso porque, acreditava, que o homem é incapaz de atingir a verdade. Daí, aceitemos a revelação!
Sobre a Mentira, Santo Agostinho dizia que “a cegueira que ocupa a alma dos homens é tanta que lhes parece pouco que digamos que algumas mentiras não são pecados …”
Sim, para ele havia a “mentira honesta”, aquela dita por dever ou misericórdia.
Vejam só: se um poderoso resolve mentir alegadamente por dever! Dever de ofício!
É necessário optar: aceita-se a Verdade imposta por um grupo ou adota-se a ciência como ferramenta incessante da busca da verdade.
Fico com a ciência e suas verdades precárias e temporárias. Espelho-me em Janus, o deus bifronte, com uma face olhando o porvir e a outra apreciando o que passou. A divindade da transformação, da mudança e das transições.
Aliás, o mês de janeiro tem esse nome em sua homenagem.