
Boécio foi um teólogo, poeta, político e filósofo romano. Acusado de apoiar um traidor, foi preso, torturado e executado em 525, a mando de Teodorico, o Grande.
Seu livro “A Consolação da Filosofia” foi escrito na prisão, concebido entre duas sessões de tortura, enquanto esperava sua morte. É o testemunho da grandeza à qual um homem pode elevar-se pelo pensamento em face da tirania e da morte.
“(…) Quando a malévola Fortuna me favorecia com bens perecíveis,
Quase me arrastou para a queda fatal.
Mas agora, tendo revelado seu vulto enganoso,
Eu imploro, e a morte se nega a vir a mim.
Por que proclamastes muitas vezes minha felicidade, amigos?
Quem se desvia é porque não estava no caminho certo.” (Boécio)
Cláudio Guimarães dos Santos tem um poema sobre Boécio:
A MORTE DE BOÉCIO (Aos que velam, persistentes, sem descrer)
O suplício da faixa apertada,
Que quase lhe arrebentara as têmporas,
Que quase lhe esmagara as órbitas,
Dava lugar ao primeiro golpe de maça,
Que o alcançou na altura do ombro
E que o fez desabar aos pés do carrasco.
O segundo golpe, em cheio na fronte,
Foi o último que Boécio viu
Com os olhos imperfeitos da matéria.
Dias antes, ele apertara a mão da Filosofia,
Sua mestra e velha amiga
(Ou apenas sonhara tê-lo feito …),
Que, com presteza, viera socorrê-lo,
Afastando-o das deidades mais frívolas,
Levando-o de volta ao Caminho,
Dissolvendo o negrume do cárcere –
A prisão em Ticinum, onde fora jogado -,
Erguendo-o, outra vez, aos cimos,
Onde brilha a poesia imaculada –
Que é sublime porque feita de verdade,
Que é verdadeira porque feita de beleza
E que é bela porque reflete o Bem -,
Às alturas onde Apolo e Dionísio,
Reconciliados para sempre,
Comemoram com os filhos de Orfeu.
A dama augusta o discípulo consolara
Do fatum cego que o ceifava no apogeu,
Da armadilha derradeira da Fortuna –
Tão constante em ser volúvel,
Tão fiel em ser incerta -,
Preparando-o para o terrível fim,
Ajudando-o a suportar, com bravura,
A crueldade do ostrogodo Teodorico –
O rei a quem servira, dedicado -,
Ele – Boécio – o “último dos romanos”,
De cujas veias chamavam cônsules e papas,
Que tinha a lealdade como natureza
E o serviço do Império como honra que obriga,
Ele – Boécio – ponte ancorada entre dois mundos,
Que presenciava, sem saber, o final de uma era –
O sonho de Augusto afundando pouco a pouco -,
E que recebera, como paga e recompensa,
O veredicto de alta traição.
Naqueles instantes confusos,
Em meio ao sangue que jorrava da cabeça aberta,
Boécio pensava em Aristóteles
E recordava, com prazer,
Cada termo que, preciso, traduzira,
Cada linha percorrida com minúcia,
E via, claramente
(Para além do sono imenso
No qual já mergulhava),
Ser possível combinar o rigor do Estagirita
Com a etérea sutileza das ideias de Platão
E que ambos os filósofos,
De uma forma que jamais se dera conta,
Religando o céu e a terra,
Ecoavam, em seus escritos, as verdades da Palavra –
Para sempre luminosa, mas nem sempre transparente -,
Do Evangelho que ele amara
E que anelara compreender.
De um ponto afastado e excêntrico,
Quase na cúspide do calabouço abobadado,
Por trás do corpanzil do carrasco –
Que desferia novos golpes monotonamente -,
Boécio intuía que a Filosofia lhe acenava
E parecia dizer-lhe que tudo acabaria bem.
Ela surgia, porém, duplicada,
Como gêmea superposta a si mesma –
Como o “coringa” de equívoco baralho -,
Já que a lâmina certeira do machado,
Que, nas mãos do carrasco, tomara o lugar da maça,
Destruíra, no cérebro agônico, o que lhe permitia
Conceber cada coisa como se fosse una,
E isso realçava – não sabia bem por quê –
A certeza do dogma que afirmava
(Ou seria um teorema a ser provado?)
Que as naturezas de Cristo eram mesmo duas,
Engastadas – unha e carne – na sua humana pessoa,
E que o Filho não era menor do que o Pai,
Como cria o herege Teodorico,
E que o Santo Espírito procedia de ambos –
Ou será que apenas de um deles?
A essa pergunta,
Naquele preciso instante,
Com os ouvidos surdos,
A língua inerte
E os membros que não mais o obedeciam,
Boécio não conseguia responder.
Percebera que o carrasco havia desaparecido,
Que o seu corpo virara uma massa amorfa e rubra
E que o teto da prisão era, agora, o próprio céu,
Estrelado e silencioso.
Ao seu lado, como gata –
Ou melhor, como esfinge -,
Sorria-lhe a Filosofia,
Afiando as longas unhas.
Sentia-se estirado,
Com as mãos suspensas num ponto muito alto
E o peso do mundo
Atado aos pés.
A dura prova da existência –
Disso estava certo –
Havia terminado.
O que vinha pela frente, ignorava.
Ainda o incomodavam –
Persistentemente –
As velhas dúvidas.
Criou, por isso, coragem
E a Antiga Deusa interpelou,
Fitando-a com foco extremo,
Já que a voz não lhe saía do resto de garganta.
“Mestra querida, Sabedoria amada,
Sibila abscôndita de um Dante futuro,
Guia e suporte da minha ascensão,
Concede ao teu filho, da tua alma gerado,
A chance rara de conhecer
A causa insensata do Mal
E, também, de compreender
Como é possível o livre-arbítrio,
Se a Divina Providência,
Desde o início,
Dispôs todas as coisas
De maneira necessária.
Ó tu, Preclara Deusa,
Ó tu, que compulsas os tempos remotos,
Que mundos sem conta despejas da mente,
Que em fóruns e ágoras gastaste os pés,
Ó tu, que cruzaste, em Atenas, com a peste
E a morte de Péricles, horrenda, choraste,
Ó tu, que, com Sócrates, bebeste a cicuta
E, com ele, exalaste o suspiro final,
Ó tu, que assististe à Grécia curvar-se
E, depois, conquistar, com cultura, os romanos,
Ó tu, que Farsália pisaste, deserta,
Depois de Pompeu ser varrido por César,
Ó tu, que inspiraste os discursos de Cícero
E que, junto de Otávio, em Áccio lutaste,
Ó tu, que esbarraste, em Corinto, com Paulo
E que viste milagres que mais ninguém viu,
Responde-me, irmã, no instante em que passo
Do pó desta morte para a Água que vive.”
De uma escada interminável
A forma assumindo,
Que se erguia, espiralada,
Ao topo dos Céus,
E pela qual desciam –
E, depois, subiam –
Poetas e filósofos,
Santos e profetas,
Carregando suas obras,
Curvados com seu peso,
As faces felizes,
Respondeu-lhe,
Com voz doce,
A sábia Filosofia.
E quando falou,
Já não era uma escada,
Mas, sim, imensa Árvore,
Maior que o universo,
Que nada ignorava
Do ômega ao alfa.
E, quando falou,
O que disse foi música:
“Filho querido,
Dizer-te poderia muitas coisas,
Aliás, como disse
Nos dias em que aqui permaneci:
Que o Mal, que te assusta, não existe,
Que é defeito dos teus olhos míopes –
Enganosa refulgência da mentira -,
Que os maus são carrascos de si mesmos,
Que os bons, na bondade, têm seu prêmio,
Pois são limpas suas mãos e consciências,
Que o Acaso, que te inquieta, nunca foi,
Que os eventos se encadeiam em rede densa,
Pela ordem, não do Tempo, mas da Essência,
Que não anula, o livre-arbítrio, a Providência,
Que o homem é incapaz de compreender,
Com as toscas ferramentas da razão,
Os detalhes e a amplidão da Criação,
Que os néscios seguirão ignorantes,
Que não se faz, sem sofrimento, a Grande Obra,
Que a Eternidade que contempla o Absoluto,
Lá do centro do seu Centro Imóvel,
É visão simultânea do infinito –
Presente que jamais deixa de ser –
Que os humanos só conhecem em sucessão,
Que vivenciam somente em fragmentos,
Neste mundo de imagens desgastadas,
Que entroniza a confusão,
Que inspira o transitório,
Que expira o simulacro,
Onde o Igual e o Diferente se confundem,
Onde nada se parece com o que é.
Poderia dizer-te muitas coisas,
Mas elas nada valem sem a fé,
A rainha indiscutível do espírito,
O ápice de toda inteligência.
Tens, aí, minha resposta:
A fé pura, meu filho,
A fé para entender,
A fé, sobretudo, para crer.
Agarra-te a ela,
Transmuta-te nela,
Na fé que tem fé –
A fé, e nada mais –
É isso que faz falta à humana gente,
Que a estrada para Deus é sem retorno.”
Escólio:
Era o mundo, para diante, um campo seco,
Era o mundo, para trás, rala memória,
Sem cidades,
Sem caminhos,
Sem clareza.
Bocejavam, ainda débeis,
O reinado da incerteza
E o do querer sempre mais,
Que não tinham precedentes
E jamais teriam fim.
Hoje, as versões são mais evidentes do que os fatos –
E, por isso, deixamos que nos guiem –
Hoje, o futuro escancara-nos as portas
E reduz nosso mundo brutalmente,
Hoje, o que brilha são as chagas da alma,
E é o egoísmo a que mais ofusca,
Hoje, o abismo no qual sumimos
Ainda é o mesmo do qual brotamos,
Até que despertemos, para sempre.