Boécio

A filosofia a serviço da paz interior: Boécio
(Boécio dando adeus à sua família, de Jean Victor Schnetz)

Boécio foi um teólogo, poeta, político e filósofo romano. Acusado de apoiar um traidor, foi preso, torturado e executado em 525, a mando de Teodorico, o Grande.

Seu livro “A Consolação da Filosofia” foi escrito na prisão, concebido entre duas sessões de tortura, enquanto esperava sua morte. É o testemunho da grandeza à qual um homem pode elevar-se pelo pensamento em face da tirania e da morte.

“(…) Quando a malévola Fortuna me favorecia com bens perecíveis,

Quase me arrastou para a queda fatal.

Mas agora, tendo revelado seu vulto enganoso,

Eu imploro, e a morte se nega a vir a mim.

Por que proclamastes muitas vezes minha felicidade, amigos?

Quem se desvia é porque não estava no caminho certo.” (Boécio)

Cláudio Guimarães dos Santos tem um poema sobre Boécio:

A MORTE DE BOÉCIO (Aos que velam, persistentes, sem descrer)

O suplício da faixa apertada,

Que quase lhe arrebentara as têmporas,

Que quase lhe esmagara as órbitas,

Dava lugar ao primeiro golpe de maça,

Que o alcançou na altura do ombro

E que o fez desabar aos pés do carrasco.

O segundo golpe, em cheio na fronte,

Foi o último que Boécio viu

Com os olhos imperfeitos da matéria.

Dias antes, ele apertara a mão da Filosofia,

Sua mestra e velha amiga

(Ou apenas sonhara tê-lo feito …),

Que, com presteza, viera socorrê-lo,

Afastando-o das deidades mais frívolas,

Levando-o de volta ao Caminho,

Dissolvendo o negrume do cárcere –

A prisão em Ticinum, onde fora jogado -,

Erguendo-o, outra vez, aos cimos,

Onde brilha a poesia imaculada –

Que é sublime porque feita de verdade,

Que é verdadeira porque feita de beleza

E que é bela porque reflete o Bem -,

Às alturas onde Apolo e Dionísio,

Reconciliados para sempre,

Comemoram com os filhos de Orfeu.

A dama augusta o discípulo consolara

Do fatum cego que o ceifava no apogeu,

Da armadilha derradeira da Fortuna –

Tão constante em ser volúvel,

Tão fiel em ser incerta -,

Preparando-o para o terrível fim,

Ajudando-o a suportar, com bravura,

A crueldade do ostrogodo Teodorico –

O rei a quem servira, dedicado -,

Ele – Boécio – o “último dos romanos”,

De cujas veias chamavam cônsules e papas,

Que tinha a lealdade como natureza

E o serviço do Império como honra que obriga,

Ele – Boécio – ponte ancorada entre dois mundos,

Que presenciava, sem saber, o final de uma era –

O sonho de Augusto afundando pouco a pouco -,

E que recebera, como paga e recompensa,

O veredicto de alta traição.

Naqueles instantes confusos,

Em meio ao sangue que jorrava da cabeça aberta,

Boécio pensava em Aristóteles

E recordava, com prazer,

Cada termo que, preciso, traduzira,

Cada linha percorrida com minúcia,

E via, claramente

(Para além do sono imenso

No qual já mergulhava),

Ser possível combinar o rigor do Estagirita

Com a etérea sutileza das ideias de Platão

E que ambos os filósofos,

De uma forma que jamais se dera conta,

Religando o céu e a terra,

Ecoavam, em seus escritos, as verdades da Palavra –

Para sempre luminosa, mas nem sempre transparente -,

Do Evangelho que ele amara

E que anelara compreender.

De um ponto afastado e excêntrico,

Quase na cúspide do calabouço abobadado,

Por trás do corpanzil do carrasco –

Que desferia novos golpes monotonamente -,

Boécio intuía que a Filosofia lhe acenava

E parecia dizer-lhe que tudo acabaria bem.

Ela surgia, porém, duplicada,

Como gêmea superposta a si mesma –

Como o “coringa” de equívoco baralho -,

Já que a lâmina certeira do machado,

Que, nas mãos do carrasco, tomara o lugar da maça,

Destruíra, no cérebro agônico, o que lhe permitia

Conceber cada coisa como se fosse una,

E isso realçava – não sabia bem por quê –

A certeza do dogma que afirmava

(Ou seria um teorema a ser provado?)

Que as naturezas de Cristo eram mesmo duas,

Engastadas – unha e carne – na sua humana pessoa,

E que o Filho não era menor do que o Pai,

Como cria o herege Teodorico,

E que o Santo Espírito procedia de ambos –

Ou será que apenas de um deles?

A essa pergunta,

Naquele preciso instante,

Com os ouvidos surdos,

A língua inerte

E os membros que não mais o obedeciam,

Boécio não conseguia responder.

Percebera que o carrasco havia desaparecido,

Que o seu corpo virara uma massa amorfa e rubra

E que o teto da prisão era, agora, o próprio céu,

Estrelado e silencioso.

Ao seu lado, como gata –

Ou melhor, como esfinge -,

Sorria-lhe a Filosofia,

Afiando as longas unhas.

Sentia-se estirado,

Com as mãos suspensas num ponto muito alto

E o peso do mundo

Atado aos pés.

A dura prova da existência –

Disso estava certo –

Havia terminado.

O que vinha pela frente, ignorava.

Ainda o incomodavam –

Persistentemente –

As velhas dúvidas.

Criou, por isso, coragem

E a Antiga Deusa interpelou,

Fitando-a com foco extremo,

Já que a voz não lhe saía do resto de garganta.

“Mestra querida, Sabedoria amada,

Sibila abscôndita de um Dante futuro,

Guia e suporte da minha ascensão,

Concede ao teu filho, da tua alma gerado,

A chance rara de conhecer

A causa insensata do Mal

E, também, de compreender

Como é possível o livre-arbítrio,

Se a Divina Providência,

Desde o início,

Dispôs todas as coisas

De maneira necessária.

Ó tu, Preclara Deusa,

Ó tu, que compulsas os tempos remotos,

Que mundos sem conta despejas da mente,

Que em fóruns e ágoras gastaste os pés,

Ó tu, que cruzaste, em Atenas, com a peste

E a morte de Péricles, horrenda, choraste,

Ó tu, que, com Sócrates, bebeste a cicuta

E, com ele, exalaste o suspiro final,

Ó tu, que assististe à Grécia curvar-se

E, depois, conquistar, com cultura, os romanos,

Ó tu, que Farsália pisaste, deserta,

Depois de Pompeu ser varrido por César,

Ó tu, que inspiraste os discursos de Cícero

E que, junto de Otávio, em Áccio lutaste,

Ó tu, que esbarraste, em Corinto, com Paulo

E que viste milagres que mais ninguém viu,

Responde-me, irmã, no instante em que passo

Do pó desta morte para a Água que vive.”

De uma escada interminável

A forma assumindo,

Que se erguia, espiralada,

Ao topo dos Céus,

E pela qual desciam –

E, depois, subiam –

Poetas e filósofos,

Santos e profetas,

Carregando suas obras,

Curvados com seu peso,

As faces felizes,

Respondeu-lhe,

Com voz doce,

A sábia Filosofia.

E quando falou,

Já não era uma escada,

Mas, sim, imensa Árvore,

Maior que o universo,

Que nada ignorava

Do ômega ao alfa.

E, quando falou,

O que disse foi música:

“Filho querido,

Dizer-te poderia muitas coisas,

Aliás, como disse

Nos dias em que aqui permaneci:

Que o Mal, que te assusta, não existe,

Que é defeito dos teus olhos míopes –

Enganosa refulgência da mentira -,

Que os maus são carrascos de si mesmos,

Que os bons, na bondade, têm seu prêmio,

Pois são limpas suas mãos e consciências,

Que o Acaso, que te inquieta, nunca foi,

Que os eventos se encadeiam em rede densa,

Pela ordem, não do Tempo, mas da Essência,

Que não anula, o livre-arbítrio, a Providência,

Que o homem é incapaz de compreender,

Com as toscas ferramentas da razão,

Os detalhes e a amplidão da Criação,

Que os néscios seguirão ignorantes,

Que não se faz, sem sofrimento, a Grande Obra,

Que a Eternidade que contempla o Absoluto,

Lá do centro do seu Centro Imóvel,

É visão simultânea do infinito –

Presente que jamais deixa de ser

Que os humanos só conhecem em sucessão,

Que vivenciam somente em fragmentos,

Neste mundo de imagens desgastadas,

Que entroniza a confusão,

Que inspira o transitório,

Que expira o simulacro,

Onde o Igual e o Diferente se confundem,

Onde nada se parece com o que é.

Poderia dizer-te muitas coisas,

Mas elas nada valem sem a fé,

A rainha indiscutível do espírito,

O ápice de toda inteligência.

Tens, aí, minha resposta:

A fé pura, meu filho,

A fé para entender,

A fé, sobretudo, para crer.

Agarra-te a ela,

Transmuta-te nela,

Na fé que tem fé –

A fé, e nada mais –

É isso que faz falta à humana gente,

Que a estrada para Deus é sem retorno.”

Escólio:

Era o mundo, para diante, um campo seco,

Era o mundo, para trás, rala memória,

Sem cidades,

Sem caminhos,

Sem clareza.

Bocejavam, ainda débeis,

O reinado da incerteza

E o do querer sempre mais,

Que não tinham precedentes

E jamais teriam fim.

Hoje, as versões são mais evidentes do que os fatos –

E, por isso, deixamos que nos guiem

Hoje, o futuro escancara-nos as portas

E reduz nosso mundo brutalmente,

Hoje, o que brilha são as chagas da alma,

E é o egoísmo a que mais ofusca,

Hoje, o abismo no qual sumimos

Ainda é o mesmo do qual brotamos,

Até que despertemos, para sempre.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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