
A poesia de Cláudio Guimarães dos Santos é um emblema de nosso tempo, angustiado, saturado de ruídos, com a sensação de que a pressão atmosférica se eleva acima de 1 atmosfera, esmagando-nos, à medida em que afundamos.
Trago aqui um dos poemas de seu novo livro, Gaugamela.
O CÉU DE DEUS
O céu de Deus é um jardim antigo
Que cochila, descuidado, pela tarde quieta,
Dessas que não há mais.
Ele brilha à nossa volta, luminoso e justo,
Mas nós o ignoramos.
Ele é o ponto de chegada dos bons que já partiram
E a miragem, inatingível, dos que lá não entrarão.
Ele é a lisa perfeição da esfera,
O labirinto onde se perde o Mal,
O frescor que renasce do mesmo,
A novidade infinda do igual,
Que gera começos,
Continuamente.
Não se pode atingi-lo pelo ar nem pela água …
Estradas, planas ou íngremes, não conduzem ao Céu de Deus.
Não adianta pôr-se de joelhos nem rastejar clamando salvação,
Que é sempre misteriosa
E que escolhe seus eleitos
Gratuitamente.
(Ou, pelo menos, assim parece ser …)
E ai daquele que, por esta vida,
Passar em branco, insosso e burocrático,
E os dias, sem coragem, descartar,
Vivendo sem nunca ter vivido –
Esse, o Céu de Deus refugará.
Tampouco serão acolhidos
Os que perseguem, obsessivos,
A perfeição de qualquer tipo
(Que é soberba antes de tudo),
A rigidez, sem humor,
Que a alma congela
E que o espírito desseca,
Pois lá, no Céu de Deus, nada é sério ou imutável,
Não há horas marcadas nem becos sem saída,
E qualquer decisão é sempre revogável:
O que foi ontem talvez não seja hoje
E será diferente – quem sabe – amanhã.
O Céu de Deus é o reino da Criança Absoluta,
Que é livre porque é feliz,
Que escorrega nas dobras do improvável,
Que confunde as certezas,
Que embaralha as previsões –
E que, por isso, ri, gostosamente -,
Que entretece, com linhas coloridas,
A teia fractal do Tempo
Por onde o sonho da Existência escorre.
No Céu de Deus, apenas,
Mantêm-se a precedência do remoto
E a solidão criadora do exílio.
Em nenhuma outra parte é possível ser inteiro,
Autêntico,
Impoluto,
E ficar com vergonha
Das mentiras deslavadas
Que se contam os humanos
Por não terem outra razão para viver.
Quando tudo acabar –
E, decerto, esse dia chegará -,
Quando os sonhos,
E as gentes,
E as coisas,
E os mitos,
E tudo o mais que existe,
Não forem sequer lembranças,
O Céu de Deus aqui estará,
Imperecível, completo, incólume,
Igualzinho ao que era no Princípio.
E ele assim ficará,
Como um ponto de luz perfurando o Nada,
Até que este universo em que vivemos
(Ou no qual cremos que vivemos),
De funestos desencontros e de dores sem fim,
Como fênix magoada,
Decida outra vez renascer,
Para exibir e expiar nossos pecados.
A Pasárgada descrita pela poesia; que bom seria merecê-la.
CurtirCurtir