O inimigo está ao lado

Gargalhada, de Cecília Meireles – Rascunho
(Cecília Meireles, 1901-1964)

É crescente a sensação de que inimigos nos cercam. De fato, há intenções malévolas nas esquinas, no trânsito, em casa, nas redes sociais, na política, no trabalho, na igreja.

Os conservadores são os mais alarmados, pois pressentem que querem destruir o mundo – a cultura – como eles o reconhecem. A mudança é o grande inimigo. Por mais que resistam, perderão. Por isso são propensos a uma maior radicalização.

Não me refiro à esquerda ou à direita, na política. Qualquer um que se sinta ameaçado, reagirá como um conservador. É o nós contra eles.

Os regimes totalitários, de todos os espectros, têm essa preocupação: não aceitam mudanças – exceto as que lhes convêm.

Vêem inimigos em toda a parte: tudo que é estranho é potencialmente inimigo. Vai saber!

O estrangeiro – imigrante – é, naturalmente, estranho. Inimigo.

Para a elite branca, o negro é estranho. Inimigo. Assim são os ciganos, os judeus, os indígenas, os pobres, a mulher – para os misóginos …

Umberto Eco certa vez pegou um táxi em Nova York, dirigido por um paquistanês. Este, ao saber que Eco era italiano, lhe perguntou: – Quem são seus inimigos?

– Inimigos? Como? – Com que povos vocês estão em guerra, aqueles que matam a gente e que a gente mata?

Eco disse que a Itália não tinha inimigos, há muito tempo. Só depois lembrou dos inimigos internos.

O inimigo é todo aquele que não é aceito por nosso grupo (social, político, empresarial, de valores, religiosos etc.). Logo percebemos que ele tem defeitos que, logicamente, não temos. É aquele a ser evitado, ou combatido.

Santo Agostinho ensinava que os inimigos são diferentes de nós e se comportam segundo costumes que não são os nossos.

“Ter um inimigo é importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor.

Portanto, quando o inimigo não existe, é preciso construí-lo.” (Umberto Eco)

É uma atitude de defesa, gerada pelo medo: por via das dúvidas afastem-se tudo que é estranho.

“Mesmo que o estranho não tenha nenhuma intenção hostil, mesmo que ele não represente nenhum perigo, é eliminado em virtude de sua alteridade”, diz Byung-Chul Han.

A reação à alteridade é uma espécie de reação imunológica.

O diferente pode ser interessante, exótico, de longe. Numa viagem turística achamos certos povos muito interessantes, diferentes. Mas, viver entre eles é outra situação.

O budismo indica que Deus não é ‘algo determinado’, é o ‘indeterminado’. Deus é a negação de todo o particular.

Um dos ensinamentos da Teosofia é que é necessário que matemos a ambição, pois ela conduz à heresia da separatividade.

Lúcia Helena Galvão explica: “Ambicionar significa sentir-se separado, pois ninguém ambiciona aquilo que já tem. Indica que há um abismo entre nós e o outro, entre nós e o Todo, e que eu presumo que a perda do outro pode me trazer benefícios.”

A realidade é Unidade, e a ambição é a desajeitada arte de roubar a si mesmo, como expressa Cecília Meireles:

“Não digas que és dono.

Sempre que disseres

roubas-te a ti mesmo.

Tu, que és senhor de tudo …

Deixa os escravos rugirem,

Querendo,

Inutiliza o gesto possuidor das mãos.

Sê a árvore que floresce

Que frutifica

E se dispersa no chão.

Deixa os famintos despojarem-te.

Nos teus ramos serenos

Há florações eternas

E todas as bocas se fartarão.”

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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