A linguagem do mundo nem sempre é a que achamos que falamos

“Fui sempre o que nunca serei”, frase atribuída a Branca Dias.

Nossa capacidade de comunicação é muito relativa; os que nos ouvem escutam aquilo que querem ouvir, confirmando seu viés de entendimento.

A fala, muitas das vezes, não gera relações dialógicas. Ou seja, os enunciados não se tornam unidades de interação social, mas de repressão, de arma para combate a uma das partes.

A peça “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes, apresenta-nos uma versão de Branca Dias, na qual a descendente de cristãos-novos é condenada à fogueira a partir de sua pureza de espírito.

Ela era uma “jovem de boniteza excepcional”, segundo Ademar Vidal, o que complicou sua vida, diante de um padre assustado com sua parte ‘existencial’.

Seu pecado é a sua origem, formalmente, e seu encantamento pela vida, de fato.

Ela acreditava que a sinceridade e a pureza, que moravam no seu coração, a absolveriam de tudo. Mais importante do que conhecer e seguir as leis e os preceitos ao pé da letra não é estar possuída de bondade? Se ela trazia Deus em si mesma, e se Deus é amor, isso não bastaria?

Não. É justamente isso que a perde, pois os homens – ela não percebe – a julgam segundo uma ideia preconcebida, que submete e corrompe a verdade.

“… eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentada, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. E amar a Deus é amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer. (…) (Branca)

Mas, esse não é o Deus das autoridades eclesiásticas. Seu Deus era controlador das emoções humanas; prazer era a artimanha do diabo.

“Deus deve estar onde há mais claridade. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver.” (Branca)

Não percebia, mas a liberdade tornou-se uma concessão.

O padre Bernardo, que ela salvara de um afogamento, a denunciou à Inquisição: ela lhe tirava a paz, liberando desejos que deveriam continuar reprimidos.

Apelando para São Tomás de Aquino, justificava-se: “Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir.”

Advogados de Deus! Os que ‘trazem em si a verdade têm o direito de mandar e o de punir”!

Liberdade, há quem não saiba teu valor!

“Homens, eu vos amava! Velai!”

(Últimas palavras no diário de Júlio Fuchick, escritor checo assassinado pelos nazistas)

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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