Ruína humana

Round 6: Revelado como todos poderiam sobreviver no jogo das bolinhas de  gude
(Lee Yoo-mi e Jung Ho-yeon, do elenco de Round 6)

A vida não é fácil, principalmente se não sentimos que somos valorizados – até por nós mesmos. O sistema social – em qualquer regime político – pode nos anular, por nos retirar a liberdade.

A liberdade é um valor primário; sem ela perdemos nossa razão; razão de existir.

No comunismo o Estado nos tira a liberdade, supostamente em nome do coletivo; no capitalismo, somos induzidos a abrir mão dela, através da prisão do consumo.

Vi a série Round 6, uma alegoria da miséria humana, da nossa capacidade de regressão ao que temos de pior, forçado pela sobrevivência.

Uma série inquietante; traz à tona, em dose extra, nossas fraquezas transformadas em potencial maldade.

O que há de pior na nossa espécie está ali: traições, mentiras, sordidez, chantagens, trapaças, indiferenças, vaidades, o poder como diversão, a descrença no próximo, o egoísmo, o desprezo pela vida … tudo em nome do atual totem, o dinheiro.

O dinheiro passou a ser a única coisa que faz sentido, que tudo justifica.

A série é ambientada na Coréia do Sul, um país enriquecido, a partir do consumo idolatrado.

Sabemos do elevado índice de suicídios entre os jovens, massacrados pela cobrança insana das famílias para o ingresso nas melhores universidades – o que pode pautar o “sucesso” ou o fracasso. Como regra, é maior o número de “fracassados”.

As famílias se endividam para acompanharem o “sucesso” dos ricos; atualmente, a dívida das famílias supera o valor do PIB.

No Brasil, comparativamente, as famílias deviam o equivalente a 46% do PIB, em 2020. Mas, já chegamos a 73% das famílias brasileiras endividadas.

A corrida por falsos valores faz com que percamos valores verdadeiros (humanidade, compaixão, respeito, solidariedade etc.). Um primeiro reflexo é passar a não confiar nas pessoas: “Não confiamos nas pessoas porque são confiáveis, mas porque são nossa única solução”, diz um personagem. Abandona-se a visão humanista pela visão utilitarista.

Alguns preceitos subjacentes são preservados: nos jogos de que trata a série, prevalece a noção de concorrência, mérito (de todo o tipo) e a sobrevivência dos mais aptos (regra essencial ao capitalismo) e, com escolha espontânea das regras do jogo, inclusive com a prevalência da maioria (simulacro da democracia).

“Todos são iguais neste jogo. Os jogadores têm um jogo limpo e nas mesmas condições. Essas pessoas sofriam com desigualdade e discriminação lá fora …

Estamos dando a elas a última chance de lutar de forma justa e vencer.” (Discurso dos promotores dos jogos)

Tudo falso, mas com a lógica que eles entendem: eles continuam com suas desigualdades e nada é mais discriminatório do que ser “escolhido” para os jogos. As lutas não são justas porque são entre desiguais, com misoginia, etarismo … igualados apenas pela miséria.

A morte é uma opção, como exercício da liberdade, já que ninguém é forçado a participar. Uma espécie de eutanásia social. A maior liberdade seria abrir mão dela.

É a grande (última) chance para o refugo social. Uma forma de validação do sistema meritocrático baseado no desejo (consumo).

No Brasil esse jogo acontece há muito, com os desesperançados com os meios legais (ou por sua inexistência) buscando uma participação marginal no sistema.

“O verdadeiro radical autêntico é aquele que torna a esperança possível, não o desespero convincente.” (Raymond Williams)

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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