
“Todo movimento de fundo nacionalista ou que tenha desembocado no fascismo foi construído por cientistas. O mito ariano, por exemplo, é uma concepção intelectual. (…) assim como o caso do darwinismo social ou a doutrina das raças, têm nos meios intelectuais um ponto de partida”, ressaltava Serge Moscovici, no seu “Representações Sociais”.
Ele afirmava que a sociedade moderna é uma “máquina de fazer deuses”. Ou seja, todo sistema de saber, em uma cultura, se torna um sistema de crença. E a crença pode tomar a forma de mito. Nós estamos cercados de mitos científicos e técnicos que fazem parte de nossa cultura.
Entre essas crenças está a “ciência econômica”.
A maioria não lembra, mas a dita “ciência” econômica do capitalismo nasceu como um rebento do liberalismo, a partir do embrião “fisiocrata”.
Costuma-se cindir o capitalismo a partir de duas visões – que dizem antagônicas, mas que são complementares: a de Maximilian Karl Emil Weber (1864-1920) e a de Karl Marx (1818-1883). Há outras, claro.
Weber tinha uma visão “culturalista”; Marx, uma visão “histórica”.
Resumidamente, Weber enfatizava a ética protestante, principalmente a calvinista, como propagadora do capitalismo. Estas, pregavam a extrema valorização do trabalho, da prática de uma profissão – que chamavam de “vocação” – na busca da salvação individual.
A criação de riquezas pelo trabalho e poupança, segundo os calvinistas, seria um sinal de que o indivíduo pertenceria ao grupo dos “predestinados”.
Enquanto o catolicismo exigia como requisito o desprendimento dos bens materiais neste mundo (menos para a Igreja, claro), o protestantismo valorizava o trabalho profissional como meio de salvação do homem (não esqueçam do dízimo).
Crença por crença, muitos aderiram ao protestantismo. Poderiam, pelo menos, contar com seu trabalho – o que garantiria a salvação. Embora o calvinismo condenasse tudo aquilo que implicasse desperdício ou esbanjamento (poupança, lembram?).
Isso era perfeito para o sistema exploratório do capitalismo: resignação com devoção.
Marx, mais “pé no chão”, entendia que a propriedade privada, a divisão social do trabalho e a troca, eram instrumentos de enriquecimento dos proprietários dos meios de produção.
Distinguia “valor de uso” e “valor de troca”. Entre a última e a primeira, a famosa “mais-valia”.
No sistema capitalista, a força de trabalho humana é uma mercadoria (não só a braçal, operária), mas ela pertence a quem a contrata, não a quem a produz.
O detalhe, percebido por Marx, é que o valor de cada “mercadoria” é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e manutenção. Só que “o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários para a manutenção do trabalhador”.
Este ou aquele conjunto de pensamentos “intelectualizados” são aceitos e incorporados como “crenças” por sociedades.
Lembremos do simpático Adam Smith (1723-1790) que propunha a retirada do Estado, para não atrapalhar. O Estado deveria se limitar ao papel de árbitro ou polícia e, garantir as leis do jogo.
Acho muito bacana essa ideia. O problema é que os monopólios e oligopólios ocupam o lugar do Estado, já que não há livre concorrência (naquilo que importa) e que a convivência do capitalismo com o poder político torna-se patrimonialista, conspícua e corrupta.
Malthus (1766-1834) fez umas contas e notou que o crescimento dos recursos naturais era linear e, o da população, geométrico. Isso seria um problema.
Era um alarmista, “negativista”; não dava crédito às predições de Saint-Simon (1760-1825) e Comte (1798-1857), positivistas, que alegavam que a ciência (e a técnica, sua derivada) terminaria por libertar o homem de sua servidão à superstição e daria cabo dos problemas humanos.
Segundo Malthus, era preciso evitar toda dilapidação de recurso. Isso cabia ao burguês e ao empresário. O proletariado, carente de educação, urbanidade (cidadania), reduzido à condição de mula de carga, não poderia garantir essa preservação de recursos.
Dizia que todo recurso que caísse nas mãos dos operários seria gasto em tabernas ou jogos.
Daí, logicamente, o trabalhador deveria ser mantido ao nível de subsistência. Ele chamou isso de “lei de bronze dos salários“.
É como se os operários fossem de outra espécie, doutro mundo.
O terceiro dos grandes clássicos, David Ricardo (1772-1823), continuou a toada.
Ele formulou a importante “lei dos rendimentos decrescentes”, que mostrava que a “mão invisível” de Adam Smith não era tão funcional.
Segundo sua lei, o capitalismo chegaria a um determinado ponto de concentração no qual os rendimentos tornam-se decrescentes, com redução da taxa de lucros.
A saída, apontava, seria manter um rigor férreo sobre os salários, mantendo-os ao nível de subsistência.
Delfim Netto (“primeiro temos de fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo”) era um leitor de David Ricardo. Assim como todos os economistas que vêem o povo como instrumento de enriquecimento das elites, ao invés de membros ativos da sociedade.
Marx, por sua vez, constatou que o proletariado sofria uma crescente pauperização (como ainda hoje). Outros, se quisessem ver, chegariam à mesma conclusão.
Marx dizia que havia um caráter contraditório no capitalismo, que socializava o trabalho enquanto privatizava os meios de produção. Parece óbvio.
Hoje, o capitalismo mudou de face, não é tanto industrial, mas de serviços e financeiro. No entanto, é uma crença social.
isso merece outro comentário.
Um texto obrigatório a todos que discorrem, como especialistas, sobre um assunto sério e que os afeta diretamente.
Parabéns pela brilhante exposição meu caríssimo Dorgival, quem dera fossemos todos semelhantes a ti.
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