O discurso da meritocracia

Meritocracia - Geografia | Manual do Enem

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 1
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (…)

Edmund Burke, conservador, dizia que “o único critério infalível de sabedoria para as mentes banais é o sucesso”. Essa é, ainda e cada vez mais, a régua que mede a “realização” pessoal e social da maioria.

O sucesso, entenda-se, é simbolizado pela riqueza material. Mesmo que se confunda com o poder (político ou social), no final o objetivo é o acúmulo de bens.

Essa é a lógica subjacente às teorias econômicas, que fazem uma correlação direta entre renda e bem-estar: mais renda significa mais consumo; mais consumo, mais bem-estar.

Não vai terminar bem essa corrida (até para o planeta). E, no meio do caminho, pilhas de derrotados. A máquina vai cuspindo os “fracos”, os que não mostraram “competência” ou apetite para a riqueza.

Até o sarrafo para os processos de ascensão social tem se elevado, reduzindo-se a mobilidade.

A péssima distribuição de renda erode as possibilidades de se sair da lama. Essa concentração de renda afeta negativamente a saúde física e emocional dos que estão excluídos, o que aumenta a dificuldade de sair do fosso.

Esse bem-estar é chamado de “utilidade”, a partir dos argumentos de Jeremy Bentham, no século XIX.

Daniel Kahneman ressalta que, enquanto a utilidade de Bentham é uma medida de satisfação sentida, a teoria econômica a vê como uma medida de desejabilidade; daí o estímulo ao consumo, motor do sucesso, que puxa vagões carregados de fracasso.

O fracasso é o que está garantido, com todo leque de distúrbios psíquicos e sociais, o que se torna um terreno para todos os populismos, alimentados por insatisfação e ressentimento.

Esse direcionamento para a “felicidade”, a partir do sucesso, é uma distorção proposital do que realmente significa viver.

“A natureza inerente da vida é uma natureza de frescor, de energia, de sensibilidade e beleza; ela precisa ser libertada, não adquirida.” (N. Sri Ram)

Porém, continua arraigada a ideia de que o mérito é a alavanca da ascensão social e, o que “justifica” as desigualdades.

“A grandeza não consiste em receber honras, mas em merecê-las”, já dizia Aristóteles.

O termo “meritocracia” foi criado após a Segunda Guerra por Michael Young, um sociólogo. Ele criticava a engessada estrutura de classes da sociedade inglesa, resquício da aristocracia. Suas hierarquias, estamentos e castas quase intransponíveis, faziam com que riquezas, distinções e oportunidades fossem distribuídas, basicamente, em função da extração social de cada um, e não do mérito.

Seria necessário, então, abrir espaço para o mérito.

Anos depois, o próprio Young percebeu que essa receita trazia inúmeras limitações.

A fórmula original da meritocracia era: QI + esforço = mérito.

Mas os talentos (QI) são inatos e desiguais, portanto, com o passar do tempo, a riqueza e o prestígio voltariam a se acumular de forma desigual pelas gerações.

Como resolver o dilema distributivo?

Os liberais – que gostam da ideia – repetem que se houver igualdade perante a lei e um mínimo de condições materiais como educação básica e, liberdade que ofereça oportunidades para todos, tudo se resolve: os mais esforçados e talentosos serão premiados.

O problema é assegurar que os pontos de partida serão iguais, sem o que, naturalmente, é de se esperar linhas de chegada desvinculadas de mérito.

Pontos de partida iguais não existem, claro.

O fato, amplamente verificado, é que as elites se distanciam aceleradamente da classe média, que, aliás, está num processo de pauperização.

No seu livro “A Cilada da Meritocracia”, Daniel Markovits aponta a meritocracia como principal responsável pelo aumento da desigualdade nos Estados Unidos.

Pensemos juntos: há um problema? Como resolver, ou tornar irrelevante, o processo de concentração de renda e, reduzir a sensação de injustiça derivada de “tanto esforço por nada”.

A solução estaria na tributação, como advoga Thomas Piketty, que acredita, resumidamente, que o acúmulo de capital financeiro e sua tributação regressiva (e evasões) são os motivadores da desigualdade?

Michael Sandel propõe uma ética na qual o sucesso deva ser compreendido em prol da coletividade. Seria um pensamento guiado pela humildade, pela compreensão do papel do acaso na vida humana e, pela criação real de oportunidades.

Algo assemelhado ao “princípio da diferença”, de John Rawls. Por trás, a primazia da justiça.

Para Rawls, os princípios da ‘justiça que avança’ são os que pessoas livres e racionais aceitariam numa condição inicial de igualdade.

Ser pobre numa sociedade aristocrática é fruto do destino (acaso), mas, ser pobre numa sociedade meritocrática é desmoralizante.

Mesmo que, segundo Markovits, “mérito seja uma farsa”.

Um sistema de mérito não pode se basear na exceção para se considerar funcional. É um jogo “me engana que eu gosto”, como as máquinas caça-níqueis: muitos ganham uns trocados e, vez em quando, é necessário que um ganhe milhares, para manter a atratividade.

Tenho muitas questões:

Como ser justo (ou ético) numa sociedade que se mostra injusta? As cotas estimulam o demérito? Devemos nos preocupar com o estado final – que sempre será desigual – ou meramente com o processo pelo qual os indivíduos jogam as cartas com que são tratados na vida?

Há uma longa conversa sobre esse tema.

Publicado por Dorgival Soares

Administrador de empresas, especializado em reestruturação e recuperação de negócios. Minha formação é centrada em finanças, mas atuo com foco nas pessoas.

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