
Joseph Jacotot era um pedagogo extravagante, do início do século XIX.
No período pós-revolucionário, era aceito que a instrução seria um instrumento para a redução das desigualdades.
O governo ficaria nas mãos da elite instruída, que se empenharia em desenvolver formas de instrução para os homens do povo, repassando os conhecimentos – só os necessários e suficientes – para, então, se reduzir a distância que os impedia de se integrarem pacificamente na ordem social.
Isso parece bem familiar.
Jacotot via esse caminho como desvios. Entendia que ao se estabelecer a igualdade como “objetivo” a ser atingido – a partir de uma situação de desigualdade – de fato só a postergaria até o infinito.
A igualdade não deveria vir depois, como um resultado a ser atingido; ela deveria ser colocada antes.
O processo educacional, ao invés de confirmar uma incapacidade que se pretende reduzir, deveria reconhecer uma capacidade (que se quer ignorar).
“Os verdadeiros amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade; eles têm que emancipar as inteligências, têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade de inteligências.” (Jacques Rancière)
Há aí uma questão política: saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser “reduzida”, ou uma igualdade a ser verificada.
Jacotot assumia que todos os homens têm igual inteligência. Mais: seria possível aprender sozinho, sem mestre explicador. O que diria agora, com tantos repositórios de “saberes” ao alcance dos dedos?
“Ao tratar a igualdade de inteligência como ponto de partida e não como objetivo a ser atingido, Jacotot inverte a lógica da discussão da superação da desigualdade.
A radicalidade de Jacotot instiga a refletir sobre como e quanto o mestre explicador e o mestre ignorante estão presentes na instituição escolar.” (Cileda dos Santos Sant’Anna Perrella)
Por ideias como essas, Jacotot foi considerado um “antiprogressista, anarquista” e foi, naturalmente, esquecido, para que se continuasse a construir escolas, programas e pedagogias.
O Ensino Universal, ou Filosofia Panecástica, desenvolvido por Jacotot, consiste justamente na afirmação do princípio de que todas as inteligências são iguais e na postulação da liberdade de método para ensinar e para aprender, a favor da emancipação intelectual dos estudantes.
Um panecástico, segundo Rancière, se interessa por todos os discursos, por todas as manifestações intelectuais e não reconhece hierarquia entre os oradores, nem entre seus discursos; ao contrário, seu interesse é verificar o que pode a igualdade de inteligência.
O termo panecástica (Pan, todos; Ekastos, cada uno) tinha por princípio que “tudo está em tudo”.
A ação prática sobre a realidade desperta e desenvolve o entendimento, a capacidade de compreensão e a emergência de níveis de abstração cada vez mais complexos.
Segundo Aristóteles, a matéria prima do educador é a esperança no ser humano. Não é o conhecimento consolidado.
A visão de Jacotot nos remete a Paulo Freire, outro iconoclasta.
Freire via a educação como uma ação libertadora: o educador reflete sobre o modo como
ele próprio trabalha, para a mudança ou para a reprodução do sistema. Ao fazer isso, busca
soluções para as crises, situações-limite, se superando quanto ao processo anterior.
Propunha um ensino na base do diálogo, na liberdade e no exercício de busca ao conhecimento participativo e transformador.
Uma educação disposta a considerar o ser humano como sujeito de sua própria aprendizagem e não como mero objeto sem respostas e saber.
Criticava o que chamava de “educação bancária”, a que entende o educando como um mero depósito de conhecimento e informações.
Voltando a Jacotot: “explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só. Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos”, nas palavras de Rancière.
“Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta”, disse José Saramago. Isto é, deve-se buscar vários ângulos, não a fim de encontrar uma verdade totalizadora e única a respeito do objeto que se propôs pesquisar, mas procurando os “sentidos vários, possibilidades próximas e remotas que nos ajudem a entender as escolhas feitas e suas implicações, a imprevisibilidade e o medo que em nós provocou”, completa Andréa Zanella.
Kant se perguntava: “quem somos nós?” Para Foucault, o que importa não é tanto o que somos nós, mas “como chegamos a isso que somos?” ou, “o que fizeram de nós?“
Aos interessados, sugiro o livro “O Mestre Ignorante“, de Jacques Rancière.
Um comentário em ““A instrução é como a liberdade: ela não se dá, conquista-se” (Jacotot)”