
Poesias de Ana Martins Marques:
“Porque um barco volta a ser madeira
e mesmo uma casa volta a ser pedra
porque as coisas tecidas um dia se destecem
porque não é eterno o amor entre as coisas
porque mesmo o vidro mesmo o metal
perecerão
os seus olhos lentos a sua carne violenta
a eletricidade do seu pensamento
seu pequeno sorriso mesmo quando você se esforça
para disfarçar sua alegria
perecerão
restará a cinza dos seus caprichos
as coisas tolas sobre você
de que se lembrarão
seus conhecidos mais jovens
aqueles que nunca foram a sua casa
aqueles que não conheceram os seus avós
aqueles que não dividiram com você a sua cama
aqueles que mal leram os seus poemas
apenas viveram um pouco mais
você será então só aquilo de que eles se lembram
uma pessoa muito diferente da que você foi
uma mulher com um casaco verde
ou era azul
que sempre passeava por aqui com um cão
da raça qual”
FINADOS
“A morte
se expia
vivendo”
(Ungaretti)
“Estava a morte por perto
e por isso a vida
armou sua vingança:
aumentando-nos a fome
a vontade de cerveja
e condimentos
o desejo de gastar o dia ao sol.
Tuas camisas nos armários
agora apenas vestem a si mesmas.
Seria preciso usá-las, levá-las para passear,
manchá-las de café, tinta, graxa,
desodorante, suor.
Uma ofensa à morte
um desafio.
Quem sabe tudo o que morreu
com quem morreu?
Um livro nunca escrito
um novo amor
um pensamento que permanecerá
impensado.
Quem sabe o que essa morte
trouxe à vida?
As casas
coloridas
estão alegres sem motivo.”
“Acabamos de lançar tuas cinzas
surpresos de que reste
tão pouco de ti
depois seguimos em silêncio
ao sol
em meio a tudo o que
te sobreviveu
– e tu estás
em tudo”