
Óssip Mandelstam, quando criança, colecionava pregos. Uma premonição, talvez. Até que tomaram todos os seus pregos, colecionados com capricho, para encaixotarem o que quer que fosse.
Ele foi um dos maiores poetas e escritores do período soviético.
Não gostava de rememorar lembranças visuais (“Minha memória não é amorosa, mas hostil …”), só as sonoras, auditivas – o sotaque do pai, a língua estranha dos avós, a apresentação de um violinista … ou a eloquência de um político.
Dizem que ele era o mais oral de todos os poetas russos: ele gestava e recitava longamente seus poemas antes de fixá-los, já prontos, por escrito.
Numa dessas, recitou um epigrama contra Stálin, lido uma só vez para quatro ou cinco amigos – um poema que falava da Rússia como um país no qual só se pode sussurrar.
Imediatamente o Kremlin soube. Foi preso, libertado e novamente preso. Morreu doente, faminto e enlouquecido a caminho de um campo de trabalhos forçados na Sibéria, durante o inverno de 1938.
O que dizia o poema que o incriminou? Coisas que nenhum tirano suporta – tudo aquilo que não o venere:
“Vivemos sem sentir o chão nos pés” e chamava o líder de “montanhista do Kremlin” e acusava o governo de não dar a devida atenção ao povo simples: “A dez passos não se ouve a nossa voz”. E, descrevia o círculo de puxa-sacos de Stálin como uma “ralé” que apenas executa ordens. Demais, não é?
Suas poesias foram salvas por sua mulher, Nadejda, que, por duas décadas, guardou seus versos na memória. Ela fazia parte de um grupo de mulheres que diziam em voz alta para si mesmas versos, ensaios, artigos científicos, teorias que não podiam circular, mas precisavam sobreviver.
Noemi Jaffe escreveu sobre isso: “O que ela sussurra”, seu livro do ano passado.
Poucos se arriscavam a publicar algo “perigoso”: na URSS havia cerca de 70 mil burocratas supervisionando as atividades de uns 7 mil escritores; além da população denunciante.
Viver com medo, cercado pelos medos dos outros, isso é a ditadura. A paranoia do tirano se alastrando de cima para baixo e contaminando a maioria. É a maior técnica de controle – aquele que a população se autoimpõe.
“… um país que fez do cidadão não somente uma pessoa reprimida, mas também autorreprimida, não somente uma pessoa censurada, mas também autocensurada, não apenas vigiada, mas que vigiava a si própria.” (Reinaldo Arenas, escritor cubano)
Esse terror não é exclusivo das ditaduras de esquerda; é típico de qualquer ditadura. Vejam o depoimento de J. M. Coetzee, falando da África do Sul, quando segregacionista:
“Não apenas livros, revistas, filmes e peças teatrais, mas também camisetas, chaveiros, bonecas, brinquedos e letreiros de lojas – qualquer coisa, na verdade, que pudesse trazer alguma mensagem ‘indesejável’ precisava passar pelo escrutínio da censura antes de vir a público.”
Mas, ditador não é burro; sempre avalia se sairá ganhando ou não usando sua força. Às vezes é necessária uma fritura prévia.
No caso de Mandelstam, antes de Stálin massacrá-lo, ligou para Bóris Pasternak: “Quem é Mandelstam? Ele é um mestre?”
Um “mestre” significava que não poderia ser descartado sem gerar algum ressentimento da população – poderia imortalizá-lo ao matá-lo.