
Vem por aí mais um dia das mães.
Dizem que a homenagem começou em 1908, a partir da iniciativa de Anna Jarvis, que queria estabelecer uma data comemorativa para lembrar sua mãe, Ann Jarvis, que morrera em 1905, num 9 de maio. Para tornar essa comemoração permanente, contou com o apoio de um comerciante. Aí a coisa pegou.
Lembrei-me de um conto de Carlos Eduardo Novaes, do seu livro de 1977, voltado para o público infanto-juvenil, “Juvenal Ouriço Repórter”.
SER FILHO É PADECER NO PURGATÓRIO
– Psssiu, psssiu.
-Eu? – virou-se Juvenal apontando para o próprio peito.
– É. O senhor mesmo – confirmou o comerciante à porta da loja – venha cá, por favor.
Juvenal aproximou-se. O comerciante inclinou-se sobre ele e como que lhe segredando algo perguntou:
– O senhor tem mãe?
– Tenho.
– Gosta dela?
– Gosto.
– Então é com o senhor mesmo que eu quero falar. Vamos entrar. Tenho aqui um presente especial para sua mãe.
– Tem mesmo? Mas por que o senhor não entrega a ela pessoalmente?
– Porque ela é sua mãe, não é minha. O senhor é que deve entregar o presente.
– Está bem. Então o senhor me dá que eu dou pra ela.
– Dar, não – corrigiu o comerciante – infelizmente não estamos em condições. As vendas só subiram 75%. Vou ter que lhe vender o presente.
– Mas eu não estava pensando em comprar um presente agora para minha mãe. O aniversário dela é em novembro.
– Não é pelo aniversário. É pelo dia das mães.
– Dia das mães? – repetiu Juvenal sempre desligado – Mães de quem?
– Mães de todos. É depois de amanhã, domingo.
– É mesmo? E quem disse isso?
– Bem …
– Está na Bíblia?
– Não. Ele foi criado por nós, comerciantes, para permitir que vocês manifestem seu amor e carinho por suas mães.
– Puxa! Vocês são tão legais. Eu não sabia que os comerciantes gostavam tanto da mãe da gente.
– Pois acredite. E olhe, vou lhe contar um segredo: nós gostamos mais da mãe de vocês do que da nossa.
– É mesmo? E por que assim?
– Porque a nossa não deixa lucro. Pelo contrário. Todo ano no dia das mães sou obrigado a desfalcar a loja para presenteá-la.
– Ainda bem que é só um dia, hein? Se fosse, digamos, um trimestre das mães, vocês estariam na maior miséria. O senhor dá presentes caros a sua mãe?
– Bem, pra falar a verdade, tem uns 10 anos que eu não dou presente pra ela no dia das mães.
– E ela não reclama?
– Reclamava, até o dia que lhe disse que o dia das mães era uma jogada comercial e que para mim o dia dela era todos os dias.
– Também acho.
– Não. Você não pode achar – esbravejou o dono da loja – eu posso porque sou comerciante. Você não, você é consumidor. Tem que comprar um presente pra ela no dia das mães.
– Bem, já que é assim então vamos ver o presente.
– Ótimo, assim é que se fala. Você tinha-me dito que gostava de sua mãe, não é verdade? Gosta muito?
– Muito. Por quê?
– Porque nós temos aqui presentes para todos os gostos. Para quem gosta muito, para quem gosta pouco, para quem ainda está em dúvida.
– E o senhor dá desconto para quem gosta muito?
– Não. Nós só damos descontos para quem tiver mais de uma mãe. Fazemos, porém, um preço especial para juiz de futebol que tem a mãe muito sacrificada. O senhor é juiz de futebol?
– Não. Sou bandeirinha – mentiu Juvenal.
– O senhor já foi xingado em campo alguma vez?
– Umas três.
– É pouco, só damos descontos para bandeirinhas que tenham sido xingados mais de cinco vezes. Vamos ver os presentes? Pra escolhermos o tipo de presente mais adequado eu preciso saber como é sua mãe?
– Mamãe? É uma mãe igual a qualquer outra. Não tem nada de especial. Ou melhor, de especial só tem o filho.
– Vejamos. Quando o senhor era garoto ela costumava dizer: “Saia agasalhado meu filho”, “não vá comer agora que o jantar já vai pra mesa”, “não ande no ladrilho descalço”, “não abra a geladeira sem camisa”, “não se esfalfe”, “não chegue tarde”, “não apanhe chuva”, costumava? Costumava dizer que o senhor estava comendo pouco e lhe entulhava de remédios?
– Exatamente – surpreendeu-se Juvenal – parece até que o senhor foi filho da minha mãe.
– Ou o senhor foi filho da minha. Se ela era realmente assim o melhor presente é esta TV a cores.
– Mas é o artigo mais caro que tem na loja. Não posso dar aquela que é mais barata?
– Que é isso meu senhor? Sua mãe merece o melhor.
– Mas eu não tenho dinheiro. Não posso dar o melhor.
– Que absurdo – indignou-se o comerciante – se o senhor não pode dar o melhor para sua mãe vai dar para quem? Será que sua mãe não merece um sacrificiozinho de sua parte?
– Claro. Claro que merece.
– E então? Pense nos sacrifícios que ela já fez pelo senhor.
– Estou pensando.
– Então pense que eu espero. Ela fez muitos?
– Muitos o quê?
– Sacrifícios.
– Não estou pensando nos sacrifícios. Estou pensando no preço.
Juvenal perguntou se podia ver outros artigos, talvez encontrasse algo mais em conta. “Posso remexer nas mercadorias da loja?”
– Lógico – disse o comerciante – esteja à vontade. Pode remexer o quanto quiser. Aqui vale tudo. Só não vale xingar a mãe.
Juvenal saiu percorrendo a loja, com o comerciante atrás, matraqueando no seu ouvido sua técnica de vendedor: “O senhor sabe o que é ser mãe? Ser mãe, como dizia Coelho Neto, é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ ser mãe é padecer num paraíso/ ser mãe é ter um filho que lhe compre uma TV a cores ou um ar condicionado ou uma geladeira, um secador de cabelos, uma cinta, um jogo de estofados, uma mobília de quarto …”
– Mobília de quarto?
– E por que não? Armário, penteadeira, mesinha de cabeceira e uma cama.
– O senhor ficou maluco? Se eu contar para o meu analista que dei uma mobília de quarto para minha mãe, o mínimo que ele vai dizer é que sou um filho edipiano …
– Mas também se o senhor der um presente barato ele vai dizer que o senhor rejeita a sua mãe. Por que o senhor não telefona para seu analista? Pergunta qual o presente que ele vai dar para a mãe dele?
– E daí?
– Daí, o senhor dá o mesmo, assim ele não vai poder lhe malhar depois.
– Não – respondeu Juvenal decidido – já resolvi. Não vou dar nada.
– O QUÊ? – vociferou o comerciante. O senhor não vai dar nada para aquela que lhe deu tudo?
– Vou lhe dar um beijo.
– Um beijo? O senhor tem coragem? O senhor é realmente um filho desnaturado. Em pleno século XX, em plena sociedade de consumo, o senhor vai chegar em casa de sua mãe e com a maior cara de pau lhe dar um beijo? Um beijo? Que espécie de filho é o senhor? Um beijo?
– Bem, talvez dois ou três.
– Então leve ao menos esta pasta de dentes aqui. Contém genitol e mantém o hálito puro na hora de beijar a mãe.”